Todos os retratos que tenho de minha mãe não me dão
nunca a verdadeira fisionomia que eu guardo dela – a doce
fisionomia daquele rosto, daquela melancólica beleza do seu
olhar. Ela passava o dia inteiro comigo. Era pequena e tinha
os cabelos pretos. Junto dela eu não sentia necessidade dos
meus brinquedos. Dona Clarisse, como lhe chamavam os
criados, parecia mesmo uma figura de estampa. Falava para
todos com um tom de voz de quem pedisse um favor, mansa
e terna como uma menina de internato. À noite ela fazia-me
dormir. Adormecer nos seus braços, ouvindo a surdina daquela voz, era o meu requinte de criança.
Ela enchia-me de carícias. E quando o meu pai chegava,
nas suas crises, exasperado como um pé-de-vento, eu via-a
chorar e pronta a esquecer todas as intemperanças verbais
do seu marido. Os criados amavam-na. Ela também os tratava com uma bondade que não conhecia mau humor.
Horas inteiras eu fico a pintar o retrato dessa mãe angélica, com as cores que tiro da imaginação, e vejo-a assim,
ainda tomando conta de mim, dando-me banhos e vestindo-me. A minha memória ainda guarda detalhes bem vivos que
o tempo não conseguiu destruir.
(José Lins do Rego. Menino de engenho. 94ª ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2007. Excerto adaptado)