O Pólo Norte
Nada como um crime 100% monstruoso, desses que elevam para um novo patamar os piores padrões que se
podem atingir em matéria de crueldade e selvageria, para descobrir quanta gente fica comovida, no Brasil de hoje, com a
sorte dos acusados – e horrorizada com a hipótese de que possa ocorrer alguma falha, por mais duvidosa que seja, na
proteção a seus direitos. É o que se está vendo no momento, mais uma vez, com o assassinato da menina Isabella
Nardoni, em São Paulo. Para muitos dos mais renomados sábios da nossa ciência jurídica, sobretudo os que se dedicam
à advocacia criminal, intelectuais de todas as variedades e até o presidente da República, o foco deixou de estar no
crime que foi cometido. O que realmente os preocupa é a “condenação antecipada” dos suspeitos, algo que, a seu ver,
estaria ocorrendo no caso. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, especialmente, se mostra angustiado com a
possibilidade de que inocentes tenham suas vidas “destruídas”. A única vida realmente destruída, até agora, foi a de
Isabella, mas isso parece ser apenas um detalhe menor na história. O verdadeiro problema, nesse modo de ver as
coisas, estaria no que os campeões do direito de defesa imaginam ser a condenação “sem julgamento” ou “sem provas”
dos acusados – fruto do desejo de “vingança” e de “linchamento” que a exposição intensa do caso na imprensa faz
nascer junto a uma população boçal e incapaz de entender os fundamentos do direito penal.
(...)
A verdadeira dificuldade para o casal Nardoni não está na violação de seus direitos. Está, isso sim, no fato de que
não surgiu até agora, após quarenta dias de investigação, feita com todos os recursos da polícia e sob o intenso holofote
da imprensa, o mais remoto indício de que o crime possa ter sido praticado por alguma outra pessoa. A verdadeira
revolta popular, ao mesmo tempo, é contra a impunidade; o temor é que o pai e a madrasta de Isabella, caso culpados,
fiquem livres. Trata-se de uma expectativa mais do que justificada pelos fatos. Se homicidas confessos, condenados em
júri popular, estão soltos, por que não seria assim outra vez? Por que não, se está solto o médico que esquartejou uma
mulher submetida a anestesia e alegou ter agido em legítima defesa? São questões que não entram no debate. Os
defensores do casal, quando de boa-fé, argumentam que nada é mais importante do que colocar a lei acima da paixão.
Mas pregar de maneira automática e em qualquer circunstância, sejam lá quais forem os fatos, a favor dos direitos dos
acusados não contribui para a genuína proteção dos direitos do cidadão; contribui, na prática, para dar conforto aos
criminosos.
O problema da Justiça brasileira, hoje, não é a escassez de direitos de defesa; o real problema é o excesso de
obstáculos para a punição e o excesso de proteção para os acusados. O Brasil é possivelmente um caso único, em todo
o mundo, onde se recomenda, diante do aumento da criminalidade, a redução das penas e o aumento dos benefícios
para os criminosos. É algo que talvez faça sentido em lugares como o Pólo Norte, por exemplo, onde não há crime
algum; no Brasil atual é simplesmente incompreensível. Não passa pela cabeça dos patronos dessas idéias a existência
de alguma relação entre o agravamento da criminalidade e a ausência de punição efetiva para os culpados. Parecem, ao
contrário, convencidos de que a saída é punir ainda menos. É muito bom, sem dúvida, para o interesse profissional dos
advogados criminalistas e para o bem-estar de seus clientes. Para todos os demais é uma tragédia.
(GUZZO, J. R. Veja, 14 maio 2008.)