Meu pai teve formação cosmopolita. Mudamo-nos de
Buenos Aires para São João da Boa Vista, depois para Poços de Caldas. Eu tinha dez anos, mas os irmãos mais velhos
Martha, Rosita, Felipe e Clara traziam os ares da mais cosmopolita cidade da América Latina e conviveram sem problemas com o cosmopolitismo das temporadas de Poços e, fora
das temporadas, com a cidade docemente caipira do interior.
Mas minha mãe vinha de uma família de imigrantes que
se constituiu em São Sebastião da Grama, mudando-se para
Poços logo após a Revolução de 32. Ela e suas irmãs traziam
uma característica que encontrei em sucessivas gerações de
filhos e filhas de imigrantes.
Nossos avós, os imigrantes do início do século, aportaram no Brasil com o sentimento de cidadania suficientemente
desenvolvido para não se abrigarem debaixo do manto de
proteção de algum coronel. Chegaram trabalhando como
colonos, depois foram para as cidades. Alguns se tornaram
agitadores políticos, outros se converteram em comerciantes,
quase todos trouxeram conceitos de cidadania que o Brasil
ainda não conhecia.
Em um país com pouca mobilidade social, com tantas crises sucessivas e sem a rede de relações sociais dos fazendeiros, a progenitura desses imigrantes aprendeu com seus
pais que a maior herança que receberia seria a educação e a
seriedade, a palavra dada, a honradez e o trabalho. A âncora
social consistia em ler, ler, sempre ler, valorizar os valores intelectuais, o trabalho, a seriedade, serem exigentes consigo
próprios, considerando supérfluo qualquer prazer.
Como minha mãe ironizava minhas irmãs quando elas,
adolescentes, se empetecavam para ir aos bailinhos! Minha
mãe dizia-lhes que era bobagem, que o importante são os
valores intelectuais.
Ao longo da vida, invariavelmente me deparei com rapazes e moças do interior mantendo vivos esses valores do
trabalho, do excessivo rigor consigo próprios. São diferentes
dos cosmopolitas, daqueles que tiveram pais que trabalharam em grandes empresas, com a segurança das grandes
organizações, e aprenderam a conviver com essas relações
hierárquicas, a navegar pelas regras tácitas do emprego, engolindo um sapo aqui, aprendendo a vender o peixe ali, montando pactos com colegas, chamando o superior de chefe e
tendo paciência para galgar os degraus hierárquicos.
A rapaziadinha do interior vai para a cidade grande sem
saber dessas coisas, mas com uma acuidade muito maior
para entender pessoas e situações. Como contou Antonio
Cândido, no prefácio de “O Menino do São Benedito”, no interior convivemos com o prefeito e com o lixeiro e se percebem grandes e pequenos homens tanto entre os poderosos
quanto entre os humildes.
(Luis Nassif. Os jovens do interior.
https://jornalggn.com.br, 24.11.2019. Adaptado)