Quem tem olhos
Eu vinha andando na rua e vi a mulher na janela. Uma mulher como as de antigamente. De cabeça branca e braços pálidos
apoiados no peitoril. Sentada, olhava para fora. Uma mulher como as de antigamente, posta à janela, espiando o mundo.
Mas a janela não era ao nível da rua, como as de antigamente. Nem era de uma casa. Era acima da entrada do prédio,
acima da garagem, acima do playground. Era lá no alto. E diante daquela janela a única coisa que havia para se ver era, do lado
oposto da rua, a parede cega de um edifício.
Não havia árvores. Ou outras janelas. Somente a parede lisa e cinzenta, manchada de umidade. Alta, muito alta.
De onde estava, assim sentada, a mulher não podia ver a rua, o movimento da rua, as pessoas passando. Teria tido que
debruçar-se, para vê-los. E não se debruçava.
Também não via o céu. Teria tido que esticar o pescoço e torcer a cabeça para vê-lo lá no alto, acima da parede cinzenta e do
seu próprio edifício, faixa de céu estreita como uma passadeira. E a mulher mantinha-se composta, o olhar lançado para a frente.
Serena, a mulher olhava a parede cinzenta.
Não era como nas pequenas cidades onde ficar à janela é estar numa frisa ou camarote para ver e ser vista, é maneira
astuciosa de estar na rua sem perder o recato da casa, de meter-se na vida alheia sem expor a própria. Não era uma forma
barricada de participação. Ali ninguém falava com ela, ninguém a cumprimentava ou via – a não ser eu que parada na calçada
a observava – e não havia nada para ela ver.
A mulher olhava para a parede cinzenta. E parecia estar bem.
E por um instante o bem-estar dela me doeu, porque acreditei que sorrisse em plena renúncia à vitalidade, que se
mantivesse serena debaixo da canga de solidão e cimento que a cidade lhe impunha, tendo aberto mão de qualquer protesto.
Desejei tirá-la dali ou dar-lhe outra vista. Depois, entendi.
A mulher olhava a parede cinzenta, mas diante dela não havia uma parede cinzenta. Havia um telão. Um telão imenso,
imperturbável, onde histórias se passavam. Que ela própria projetava, mas das quais era devotada espectadora e eventual
personagem. Suas fantasias, suas lembranças, seus desejos moviam-se sobre a parede que já não era cinzenta, que era o
suporte do mundo, ao vivo e a cores. Só ela os via. Mas com que nitidez! (...)
Quem tem ouvidos ouça, disse o profeta. E, Ele não disse, mas digo eu, quem tem olhos veja.
(COLASANTI, Marina. In: PINTO, Manuel da Costa (Org.). Crônica brasileira
contemporânea: antologia de crônicas. São Paulo: Moderna, 2005. Fragmento.)