Expatriaram o gato
Marina Colasanti, quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020
Atravessei a vila que dá saída ao meu prédio, e vi o gato. Todo branco, só a cauda preta e duas
manchinhas mínimas na testa. Os olhos, azul cerúleo.
“Psssit, psssit”, me inclinei. E ele veio buscar
o lote de carícias que o som lhe prometia. É altamente provável que eu tenha tido mais prazer que ele
nesse encontro.
Gatos são animais elegantes. Embora eu admire qualquer animal, tenho que admitir a superioridade estética dos felinos com sua postura esnobe,
sempre trajados para grande gala, sempre desfilando
no tapete vermelho. Todo gato é star.
E agora leio que o mercado editorial mudou
o papel do gato e o transformou em uma espécie
de filósofo de autoajuda. Os títulos se multiplicam,
assim como as vendas. O substrato de tantas publicações semelhantes é que temos muito a aprender
com os gatos. Segundo o francês Stéphane Garnier,
autor de “Agir e pensar como um gato”, há cerca de
40 características positivas em um gato, que podem
ser muito úteis para o ser humano.
Depois de fazer do gato um pensador em “O
gato filósofo”, utilizando em vez de miados as sábias
vozes de Confúcio, Mêncio, e Lao-Tsé, a ilustradora
chinesa Kwong Kuen Shan, repetiu a dose em “O gato
zen”, “O gato e as orquídeas” e, proximamente, “As
quatro estações do gato”.
La Fontaine, um mestre na tipificação dos
animais, não via no gato tantas virtudes. Nem se interessou grandemente por ele. Em mais de duzentas
fábulas dos seus doze livros, só seis são centradas
no gato, e sempre em relação ao rato, seu oponente
principal. O retrato que sai dessas seis fábulas dificilmente poderia ajudar alguém a reequilibrar sua vida
ou seu ego. Para
La Fontaine, o gato é um animal feroz, em constante perseguição do inimigo, totalmente desprovido de misericórdia.
O primeiro gato da minha vida foi “O gato de
botas”. Tive até um disco com a versão musicada desse conto, e o ouvi tantas vezes que até hoje posso
cantarolar trechos. Mas esse gato não era o sanguinário de La Fontaine, era o esperto de Perrault. Aliás,
não era de nenhum dos dois, ou de nenhum dos três,
já que os irmãos Grimm também escreveram uma
versão. Era um gato bem mais antigo, que desde o
século XVI morava nas páginas do livro “Le piacevoli
notti” (as noites prazerosas) escrito pelo italiano Straparola.
O gato daquele tempo era autossuficiente,
pensava em si mesmo primeiro, almejava a boa vida.
Mentiras e enganos lhes eram permitidos. E o Gato
de Botas mente para o Rei, engana o Ogro e o come,
para apossar-se do seu castelo e fazer com que o
dono – que nada fez para merecê-lo – se case com a
princesa. Um Gato nada exemplar, e deve ser por isso
que as crianças, levadas a mentir pelas exigências dos
adultos, gostam tanto dele.
O segundo gato a cruzar minha vida, quase
num empate com o primeiro, foi o de Pinóquio. Um
gato meliante, falso cego, companheiro da raposa
manca, dupla que engana a marionete, depois a assalta no escuro bosque e acaba por enforcá-lo num
galho do Carvalho Grande. Esse tampouco serviria
como coach de autoajuda.
Os animais são tipificados há muitos séculos,
desde o Panchatantra, livro de sabedoria indiana com
fábulas de animais, escrito em sânscrito por volta do
século III a.C. Cada animal tem suas características e
sua função no jogo de identificação com os humanos,
permitindo uma redução da narrativa. Agora vem a
modernidade com sua sede de lucros embaralhar o
jogo e trocar sobre a mesa cartas com as quais lidávamos desde sempre. De onde tira esse direito?
Disponível em: <https://www.marinacolasanti.com/2020/02/expatriaram
-o-gato.html> . Acesso em: 17 fevr. 2020.