Crônica da vida que passa
Às vezes, quando penso nos homens célebres, sinto por
eles toda a tristeza da celebridade.
A celebridade é um plebeísmo. Por isso deve ferir uma
alma delicada. É um plebeísmo porque estar em evidência, ser
olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensação
de parentesco exterior com as criaturas que armam escândalo
nas ruas, que gesticulam e falam alto nas praças. O homem que
se torna célebre fica sem vida íntima: tornam‐se de vidro as paredes de sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo
o seu traje; e aquelas suas mínimas ações – ridiculamente humanas às vezes – que ele quereria invisíveis, côa‐as a lente da
celebridade para espetaculosas pequenezes, com cuja evidência
a sua alma se estraga ou se enfastia. É preciso ser muitogrosseiro
para se poder ser célebre à vontade.
Depois, além dum plebeísmo, a celebridade é uma contradição. Parecendo que dá valor e força às criaturas, apenas
as desvaloriza e as enfraquece. Um homem de gênio desconhecido pode gozar a volúpia suave do contraste entre a sua
obscuridade e o seu gênio; e pode, pensando que seria célebre se quisesse, medir o seu valor com a sua melhor medida,
que é ele próprio. Mas, uma vez conhecido, não está mais na
sua mão reverter à obscuridade. A celebridade é irreparável.
Dela como do tempo, ninguém torna atrás ou se desdiz.
E é por isto que a celebridade é uma fraqueza também.
Todo o homem que merece ser célebre sabe que não vale a
pena sê‐lo. Deixar‐se ser célebre é uma fraqueza, uma concessão
ao baixo‐instinto, feminino ou selvagem, de querer dar nas
vistas e nos ouvidos.
Penso às vezes nisto coloridamente. E aquela frase de que
“homem de gênio desconhecido” é o mais belo de todos os destinos, torna‐se‐me inegável; parece‐me que esse é não só o mais
belo, mas o maior dos destinos.
(PESSOA, Fernando. Páginas íntimas e de autointerpretação. Lisboa:
Edições Ática, [s.d.]. p. 66‐67.)