Instrução: A questão a seguir toma por base
uma passagem da crônica O pai, hoje e amanhã, de Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987).
A civilização industrial, entidade abstrata, nem por isso menos poderosa, encomendou à ciência aplicada a execução de um
projeto extremamente concreto: a fabricação do ser humano sem
pais.
A ciência aplicada faz o possível para aviar a encomenda
a médio prazo. Já venceu a primeira etapa, com a inseminação
artificial, que, de um lado, acelera a produtividade dos rebanhos
(resultado econômico) e, de outro, anestesia o sentimento filial
(resultado moral).
O ser humano concebido por esse processo tanto pode considerar-se filho de dois pais como de nenhum. Em fase mais evoluída, o chamado bebê de proveta dispensará a incubação em
ventre materno, desenvolvendo-se sob condições artificiais plenamente satisfatórias. Nenhum vínculo de memória, gratidão,
amor, interesse, costume – direi mesmo: de ressentimento ou
ódio – o ligará a qualquer pessoa responsável por seu aparecimento. O sêmen, anônimo, obtido por masturbação profissional
e recolhido ao banco especializado, por sua vez cederá lugar ao
gerador sintético, extraído de recursos da natureza vegetal e mineral. Estará abolida, assim, qualquer participação consciente
do homem e da mulher no preparo e formação de uma unidade
humana. Esta será produzida sob critérios políticos e econômicos tecnicamente estabelecidos, que excluem a inútil e mesmo
perturbadora intromissão do casal. Pai? Mito do passado.
Aparentemente, tal projeto parece coincidir com a tendência, acentuada nos últimos anos, de se contestar a figura tradicional do pai. Eliminando-se a presença incômoda, ter-se-ia
realizado o ideal de inúmeros jovens que se revoltam contra ela
– o pai de família e o pai social, o governo, a lei – e aspiram à
vida isenta de compromissos com valores do passado.
Julgo ilusória esta interpretação. O projeto tecnológico de
eliminação do pai vai longe demais no caminho da quebra de
padrões. A meu ver, a insubmissão dos filhos aos pais é fenômeno que envolve novo conceito de relações, e não ruptura de
relações.
(De notícias e não notícias faz-se a crônica, 1975.)