Considerando o texto literário precedente, de Machado de Ass...

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Ano: 2024 Banca: CESPE / CEBRASPE Órgão: UNB Prova: CESPE / CEBRASPE - 2024 - UNB - Prova de Conhecimentos II - 1° dia |
Q3107462 Português
As academias de Sião



       Deu lugar a essa enorme ascensão de pensamentos o fato de quererem as quatro academias de Sião resolver este singular problema: — por que é que há homens femininos e mulheres másculas? E o que as induziu a isso foi a índole do jovem rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Vai senão quando uma das academias achou esta solução ao problema:

      — Umas almas são masculinas, outras femininas. A anomalia que se observa é uma questão de corpos errados.

      — Nego, bradaram as outras três; a alma é neutra; nada tem com o contraste exterior.

     Kinnara [a concubina preferida do rei] levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem feminino, ela era a mulher máscula — um búfalo com penas de cisne. Era o búfalo que andava agora no aposento, mas daí a pouco foi o cisne que parou, e, inclinando o pescoço, pediu e obteve do rei, entre duas carícias, um decreto em que a doutrina da alma sexual foi declarada legítima e ortodoxa, e a outra, absurda e perversa. Entretanto, a bela Kinnara tinha um plano engenhoso e secreto.

    — Vossa Majestade decretou que as almas eram femininas e masculinas, disse Kinnara depois de um beijo. Suponha que os nossos corpos estão trocados. Basta restituir cada alma ao corpo que lhe pertence. Troquemos os nossos...

      — Não creio no meu próprio decreto, redarguiu ele, rindo; mas vá lá, se for verdade, troquemos... Mas por um semestre, não mais. No fim do semestre destrocaremos os corpos.

      Ajustaram que seria nessa mesma noite. A primeira ação de Kalaphangko (daqui em diante entenda-se que é o corpo de rei com a alma de Kinnara, e Kinnara o corpo da bela siamesa com a alma do Kalaphangko) foi nada menos que dar as maiores honrarias à academia sexual. Mandou chamar os acadêmicos; vieram todos menos o presidente, o ilustre U-Tong, que estava enfermo. Referindo-se a U-Tong, perguntou-lhes se realmente era um grande sábio, como parecia; mas, vendo que mastigavam a resposta, ordenou-lhes que dissessem a verdade inteira. Com exemplar unanimidade, confessaram eles que U-Tong era um dos mais singulares estúpidos do reino, espírito raso, sem valor, nada sabendo e incapaz de aprender nada. Kalaphangko estava pasmado. Um estúpido? Três dias depois, U-Tong compareceu ao chamado do rei. E eis o que este lhe respondeu:

      — Real Senhor, perdoai a familiaridade da palavra: são treze camelos, com a diferença de que os camelos são modestos, e eles não; comparam-se ao sol e à lua. Mas, na verdade, nunca a lua nem o sol cobriram mais singulares pulhas do que esses treze...

      [Kalaphangko] mandou chamar os outros acadêmicos, mas desta vez separadamente, a fim de não dar na vista, e para obter maior expansão. O primeiro que chegou, ignorando aliás a opinião de U-Tong, confirmou-a integralmente com a única emenda de serem doze os camelos, ou treze, contando o próprio U-Tong. O segundo não teve opinião diferente, nem o terceiro, nem os restantes acadêmicos. Diferiam no estilo; uns diziam camelos, outros usavam circunlóquios e metáforas, que vinham a dar na mesma coisa.

     Chegou ao fim do semestre; chegou o momento de destrocar os corpos. Como da primeira vez, [Kalaphangko e Kinnara] meteram-se no barco real, à noite, e deixaram-se ir águas abaixo, ambos de má vontade, saudosos do corpo que iam restituir um ao outro. Proferiram eles a fórmula misteriosa, e cada alma foi devolvida ao corpo anterior. Foram interrompidos por uma deleitosa música, ao longe. E a música vinha chegando, agora mais distinta, até que numa curva do rio apareceu aos olhos de ambos um barco magnífico, adornado de plumas e flâmulas. Vinham dentro os catorze membros da academia (contando U-Tong) e todos em coro mandavam aos ares o velho hino: “Gló ria a nó s, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!”. A bela Kinnara tinha os olhos esbugalhados de assombro. Não podia entender como é que catorze varões reunidos em academia eram a claridade do mundo, e separadamente uma multidão de camelos. 



Machado de Assis. As academias de Sião. In: 50 contos de Machado de Assis. Selecionados por John Gledson. São Paulo: Cia. das Letras, 2007, p. 303-310 (com adaptações). 
Considerando o texto literário precedente, de Machado de Assis, julgue o item. 

Por meio da inversão do inquestionável — o saber acadêmico — em algo questionável, Machado de Assis põe em evidência uma contradição moderna que ainda não pôde ser superada no atual estágio do capitalismo.
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