A parte introdutória à entrevista com Cristiane Tavares tem ...
TEXTO 1
Os não-ditos das leituras silenciosas
Está no papo
25 de junho de 2018 às 09h52
Guimarães Rosa já anunciava em Grande Sertão: Veredas: "O silêncio é a gente mesmo demais". Foi ele mesmo um menino quieto e sensível durante a infância. Do silêncio fizeram-se as palavras. "O silêncio está na constituição da poesia porque é parte integrante de alguns de seus principais elementos: ritmo e imagem. Não há ritmo sem pausas, não há som, sem silêncio. Do mesmo modo, não há imagem sem vazio", explica Cristiane Tavares, especialista em literatura infantil e coordenadora do curso de pós-graduação Livros, crianças e jovens: teoria, mediação e crítica, do Instituto Vera Cruz.
Ela lembra que Guimarães Rosa é um grande representante da tríade literatura, infância e silêncio, tema importante para se discutir as infâncias contemporâneas. "Penso que o silêncio é necessário para as crianças, tanto quanto para a literatura, pois é condição para a criação, é janela para a contemplação. Em tempos de tanta velocidade, de excesso de ruído, profusão de imagens, o silêncio é raridade, deve ser preservado."
Ao mesmo tempo, a especialista reconhece que nem todos os silêncios são poéticos. Cita alguns presentes na infância, advindos de experiências de violência, ausência, solidão e preconceito. "Em todos esses casos, em maior ou menor grau, sempre haverá (quero crer!) pontos de fuga para silêncios poéticos que devolvam a dignidade e a beleza às infâncias. Mas é preciso muito trabalho para desenhar esses pontos de fuga na realidade." São pontos de fuga que, segundo a pesquisadora, alimentam "de dentro para fora a complexidade de existir".
Na literatura, esses silêncios reverberam naqueles textos que não dizem tudo de um modo óbvio, mas abrem espaço para o diálogo com o leitor. Habitam, por exemplo, os livros-álbum, nos quais o texto e a imagem têm uma relação intrínseca. Nessas obras, o silêncio é pré-requisito. São desafiadores porque pedem uma mediação mais silenciosa, sem tanta fala do adulto. "Nem todo leitor gosta de se deparar com esses espaços em branco porque podem ser angustiantes mesmo. Mas a angústia faz parte da experiência leitora e pode levar a lugares pouco visitados por nós."
Daí vem a necessidade de nos silenciarmos após a leitura, sem precisar prestar contas, convencer o outro a ler também ou elaborar rapidamente alguma interpretação do que se leu. Assim também nos conta Teresa Colomer, em Andar entre livros – a leitura literária na escola (Global, 2007): "A leitura autônoma, continuada, silenciosa, de gratificação imediata e livre escolha é imprescindível para que o próprio texto ensine a ler”.
Leia agora abaixo parte da conversa com Cristiane Tavares sobre silêncio, infância e literatura.
Em artigo publicado na revista Emília, Cecilia Bajour cita Breton: “O silêncio não é nunca o vazio, mas a respiração entre as palavras, a dobra momentânea que permite a fluência dos significados, o intercâmbio de observações e emoções, o equilíbrio das frases que se amontoam nos lábios e o eco de sua recepção, é o tato que cedo ao uso da palavra mediante uma rápida inflexão da voz, explorada de imediato pelo que se espera do momento favorável”. Qual a relação entre silêncio, literatura e infância?
Cristiane Tavares – Quando penso nessa relação entre “silêncio, literatura e infância”, logo me vem uma frase do Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas: “O senhor sabe o que o silêncio é? O silêncio é a gente mesmo demais.” Gosto muito desse modo mineiro e roseano de entender o silêncio. E cito esse autor porque penso que ele traduz muito bem essa tríade – silêncio, literatura e infância – em sua obra. Miguilim é um exemplo: menino quieto, sensível, que armava arapuca e pensava no que deviam sentir os pássaros quando estavam presos, separados dos seus companheiros, e observava como saíam felizes soltos das arapucas. Ele mesmo, o Rosa, foi menino quieto, prezava o silêncio. Esse menino quieto, quando adulto, falava mais de cinco línguas... O silêncio é também condição para a aprendizagem. Da cabeça e do coração desse menino quieto saíram obras-primas como Grande Sertão e Manuelzão e Miguilim. Penso que o silêncio é necessário para as crianças, tanto quanto para a literatura, pois é condição para a criação, é janela para a contemplação. Em tempos de tanta velocidade, de excesso de ruído, profusão de imagens, o silêncio é raridade, deve ser preservado.
[...]
Como o silêncio pode dialogar com a autonomia do jovem leitor?
Cristiane Tavares – Silêncio e autonomia leitora andam lado a lado. Do mesmo modo que é importante compartilhar as leituras e conversar sobre os livros, é fundamental respeitar e proporcionar momentos de silêncio depois da leitura. Ler sem precisar prestar contas, ler sem precisar convencer o outro a ler também, ler sem precisar elaborar rapidamente o que se leu. Uma situação alimenta a outra, a autonomia se constrói firmada na partilha e, em especial na escola, as duas situações precisam ser garantidas: ler com os outros e ler sozinho. Teresa Colomer reflete muito sobre isso em Andar entre livros – a leitura literária na escola (Global, 2007) e destaca a importância de garantir momentos de leitura silenciosa na sala de aula: “A criação de um espaço de leitura individual na escola pretende dar a oportunidade de ler a todos os alunos; aos que têm livros em casa e aos que não os têm, aos que dedicam tempo de lazer à leitura e aos que só leriam nos minutos dedicados a realizar as tarefas escolares na aula. A leitura autônoma, continuada, silenciosa, de gratificação imediata e livre escolha é imprescindível para que o próprio texto ensine a ler.”
(Texto adaptado. Disponível em:http://www.blogdaletrinhas.com.br/conteudos/visualizar/Os-nao-ditos-das-leituras-silenciosas
TEXTO 2
Campo Geral
Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Veredado-Frango-d'Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos. Quando completara sete, havia saído dali, pela primeira vez: o tio Terêz levou-o a cavalo, à frente da sela, para ser crismado no Sucuriju, por onde o bispo passava. Da viagem, que durou dias, ele guardara aturdidas lembranças, embaraçadas em sua cabecinha. De uma, nunca pôde se esquecer: alguém, que já estivera no Mutúm, tinha dito: ― "É um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre..."
Mas sua mãe, que era linda e com cabelos pretos e compridos, se doía de tristeza de ter de viver ali. Queixava-se, principalmente nos demorados meses chuvosos, quando carregava o tempo, tudo tão sozinho, tão escuro, o ar ali era mais escuro; ou, mesmo na estiagem, qualquer dia, de tardinha, na hora do sol entrar. — "Oê, ah, o triste recanto..." — ela exclamava. Mesmo assim, enquanto esteve fora, só com o tio Terêz, Miguilim padeceu tanta saudade, de todos e de tudo, que às vezes nem conseguia chorar, e ficava sufocado. E foi descobriu, por si, que, umedecendo as ventas com um tico de cuspe, aquela aflição um pouco aliviava. Daí, pedia ao tio Terêz que molhasse para ele o lenço; e tio Terêz, quando davam com um riacho, um minadouro ou um poço de grota, sem se apear do cavalo abaixava o copo de chifre, na ponta de uma correntinha, e subia um punhado d'água. Mas quase sempre eram secos os caminhos, nas chapadas, então tio Terêz tinha uma cabacinha que vinha cheia, essa dava para quatro sedes; uma cabacinha entrelaçada com cipós, que era tão formosa. — "É para beber, Miguilim..." — tio Terêz dizia, caçoando. Mas Miguilim ria também e preferia não beber a sua parte, deixava-a para empapar o lenço e refrescar o nariz, na hora do arrocho. Gostava do tio Terêz, irmão de seu pai.
Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia para dar à mãe: o que o homem tinha falado — que o Mutúm era lugar bonito... A mãe, quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava consolada. Era um presente; e a ideia de poder trazê-lo desse jeito de cor, como uma salvação, deixava-o febril até nas pernas. Tão grave, grande, que nem o quis dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de esperar; e, assim que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e contou-lhe, estremecido, aquela revelação. A mãe não lhe deu valor nenhum, mas mirou triste e apontou o morro; dizia: — "Estou sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver..." Era a primeira vez que a mãe falava com ele um assunto todo sério. No fundo de seu coração, ele não podia, porém, concordar, por mais que gostasse dela: e achava que o moço que tinha falado aquilo era que estava com a razão. Não porque ele mesmo Miguilim visse beleza no Mutúm — nem ele sabia distinguir o que era um lugar bonito e um lugar feio. Mas só pela maneira como o moço tinha falado: de longe, de leve, sem interesse nenhum; e pelo modo contrário de sua mãe — agravada de calundú e espalhando suspiros, lastimosa. No começo de tudo, tinha um erro — Miguilim conhecia, pouco entendendo. Entretanto, a mata, ali perto, quase preta, verde-escura, punha-lhe medo.
(ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 11.ed. São Paulo: Nova Fronteira, 2001.)