Nesse texto, o autor reorienta o leitor no processo de leit...
Certa vez, eu jogava uma partida de sinuca, e só havia a bola sete na mesa. De modo que a mastiguei lentamente saboreando-lhe os bocados com prazer. Refiro-me à refeição que havia pedido ao garçom. Dei-lhe duas tacadas na cara. Estou me referindo à bola. Em seguida, saí montando nela e a égua, de que estou falando agora, chegou calmamente à fazenda de minha mãe. Fui encontrá-la morta na mesa, meu irmão comia-lhe uma perna com prazer e ofereceu-me um pedaço: “Obrigado”, disse eu, “já comi galinha no almoço”.
Logo em seguida, chegou minha mulher e deu-me na cara. Um beijo, digo. Dei-lhe um abraço. Fazia calor. Daí a pouco minha camisa estava inteiramente molhada. Refiro-me a que estava na corda secando, quando começou a chover. Minha sogra apareceu para apanhar a camisa.
Não tive remédio senão esmagá-la com o pé. Estou falando da barata que ia trepando na cadeira. Malaquias, meu primo, vivia com uma velha de oitenta anos. A velha era sua avó, esclareço.
Malaquias tinha dezoito filhos, mas nunca se casou. Isto é, nunca se casou com uma mulher que durasse mais de um ano. Agora, sentado à nossa frente, Malaquias fura o coração com uma faca. Depois corta as pernas e o sangue do porco enche a bacia.
Nos bons tempos passeávamos juntos. Eu tinha um carro. Malaquias tinha uma namorada. Um dia rolou a ribanceira. Me refiro a Malaquias. Entrou pela pretória adentro arrebentando porta e parou resfolegante junto do juiz pálido de susto. Me refiro ao carro. E a Malaquias.
FERNANDES, M. Trinta anos de mim mesmo. São Paulo: Abril Cultural, 1973.