Leia o trecho do conto “Linha reta e linha curva” de Machado de Assis.
Era em Petrópolis, no ano de 186... Já se vê que a minha história não data de longe. É tomada dos anais contemporâneos e
dos costumes atuais. Talvez algum dos leitores conheça até as personagens que vão figurar neste pequeno quadro. Não será raro
que, encontrando uma delas amanhã, Azevedo, por exemplo, um dos meus leitores exclame:
– Ah! cá vi uma história em que se falou de ti. Não te tratou mal o autor. Mas a semelhança era tamanha, houve tão pouco
cuidado em disfarçar a fisionomia, que eu, à proporção que voltava a página, dizia comigo: É o Azevedo, não há dúvida.
Feliz Azevedo! À hora em que começa essa narrativa é ele um marido feliz inteiramente feliz. Casado de fresco, possuindo
por mulher a mais formosa dama da sociedade, e a melhor alma que ainda se encarnou ao sol da América, dono de algumas
propriedades bem situadas e perfeitamente rendosas, acatado, querido, descansado, tal é o nosso Azevedo, a quem por cúmulo de
ventura coroam os mais belos vinte e seis anos.
Deu-lhe a fortuna um emprego suave: não fazer nada. Possui um diploma de bacharel em direito; mas esse diploma nunca lhe
serviu; existe guardado no fundo da lata clássica em que o trouxe da Faculdade de São Paulo. De quando em quando Azevedo faz
uma visita ao diploma, aliás ganho legitimamente, mas é para não se ver mais senão daí a longo tempo. Não é um diploma, é uma
relíquia.
Quando Azevedo saiu da Faculdade de São Paulo e voltou para a fazenda da província de Minas Gerais, tinha um projeto: ir
à Europa. No fim de alguns meses o pai consentiu na viagem, e Azevedo preparou-se para realizá-la. Chegou à corte no propósito
firme de tomar lugar no primeiro paquete que saísse; mas nem tudo depende da vontade do homem. Azevedo foi a um baile antes
de partir; aí estava armada uma rede em que ele devia ser colhido. Que rede! Vinte anos, uma figura delicada, esbelta, franzina,
uma dessas figuras vaporosas que parecem desfazer-se ao primeiro raio do sol. Azevedo não foi senhor de si: apaixonou-se; daí a
um mês casou-se, e daí a oito dias partiu para Petrópolis.
Disponível em: https://www.bonfinopolis.mg.gov.br/wp-content/uploads/2021/03/TODOS-OS-CONTOS.pdf. Acesso em: 11 dez. 2024.