Instrução: Leia o texto a seguir para responder à questão.
Ponto de partida para o reconhecimento de uma eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares é a constatação de que, ao contrário do Estado clássico e liberal de Direito, no qual os direitos
fundamentais, na condição de direitos de defesa, exerciam – ou, pelo menos, eram concebidos desse modo –
a função precípua de proteger o indivíduo de ingerências por parte dos poderes públicos no âmbito da sua
esfera pessoal (liberdade, privacidade, propriedade, integridade física etc.), alcançando, portanto, relevância
apenas nas relações entre os indivíduos e o Estado, como reflexo da então preconizada separação entre
sociedade e Estado, assim como entre o público e o privado, no assim denominado Estado Social de Direito
tal configuração restou superada.
Com efeito, com a ampliação crescente das atividades e funções estatais, somada ao incremento da
participação ativa da sociedade no exercício do poder, verificou-se que a liberdade dos particulares – assim
como os demais bens jurídicos fundamentais assegurados pela ordem constitucional – não carecia apenas de
proteção contra ameaças oriundas dos poderes públicos, mas também contra os mais fortes no âmbito da
sociedade, isto é, advindas da esfera privada. Na verdade, cumpre assinalar que, se o Estado chegou a ser
considerado o destinatário exclusivo dos direitos fundamentais dos seus cidadãos, não há como negar que as
ameaças resultantes do exercício do poder social e da opressão socioeconômica já se faziam sentir de forma
aguda no auge do constitucionalismo liberal-burguês, bastando aqui uma breve alusão às consequências da
Revolução Industrial, cujo primeiro ciclo teve início justamente quando eram elaboradas as primeiras
Constituições escritas e – ao menos no âmbito europeu – quando se vivenciava o apogeu dessa primeira
“onda” do constitucionalismo, no âmbito do qual, de resto, foram reconhecidos – ao menos sob o prisma
formal – os primeiros direitos fundamentais.
O Estado passa a aparecer, assim, como devedor de postura ativa, no sentido de uma proteção integral e
global dos direitos fundamentais, deixando de ocupar – na feliz formulação de Vieira de Andrade – a
posição de “inimigo público”, ou, pelo menos, não mais a de inimigo número um (ou único) da liberdade e
dos direitos dos cidadãos, como poderíamos acrescentar. Nesse contexto, cumpre referir que expressivo rol
de doutrinadores têm reproduzido a tendência (por sua vez, não completamente imune a críticas) de
reconduzir o desenvolvimento da noção de uma vinculação dos particulares aos direitos fundamentais ao
reconhecimento de sua dimensão jurídico-objetiva, de acordo com a qual os direitos fundamentais exprimem
determinados valores que o Estado não apenas deve respeitar, mas também promover e proteger, valores
esses que, de outra parte, alcançam uma irradiação por todo o ordenamento jurídico – público e privado –,
razão pela qual de há muito os direitos fundamentais deixaram de poder ser conceituados como sendo
direitos subjetivos públicos, isto é, direitos oponíveis pelos seus titulares (particulares) apenas em relação ao
Estado.
(SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais. B. Cient. ESMPU, Brasília, a. 4 - n.16 - jul./set. 2005.)