De acordo com o cronista,
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Nos filmes e histórias em quadrinhos da nossa infância
recebíamos uma lição da qual só agora me dou conta. Não
era a que o Bem sempre vence o Mal, embora o herói sempre
vencesse o bandido. Quem dava a lição era o bandido, e era
esta: a morte precisa de uma certa solenidade.
A vitória do herói sobre o bandido era banalizada pela
repetição. Para o mocinho, matar era uma coisa corriqueira,
uma decorrência da sua virtude. Já o bandido era torturado
pela ideia da morte, pela sua própria vilania, pelo terrível poder que cada um tem de acabar com a vida de outro. O bandido era incapaz de simplesmente matar alguém, ou matar
alguém simplesmente. Para ele o ato de matar precisava ser
lento, trabalhado, ornamentado, erguido acima da sua inaceitável vulgaridade — enfim, tão valorizado que dava ao herói
tempo de escapar e ainda salvar a mocinha. Pois a verdade
é que nenhum herói teria sobrevivido à sua primeira aventura
se não fosse esta compulsão do vilão de fazer da morte uma
arte demorada, um processo com preâmbulo e apoteose, e
significado. Nunca entendi por que o bandido não dava logo
um tiro na testa do herói quando o tinha em seu poder, em
vez de deixá-lo suspenso sobre o poço dos jacarés por uma
corda besuntada que os ratos roeriam pouco a pouco, enquanto o gramofone1
tocava Wagner2
. Hoje sei que o vilão
queria dar tempo, ao mocinho e à plateia, de refletir sobre a
finitude e a perversidade humanas.
Os vilões do meu tempo de matinês eram invariavelmente “gênios do Mal”, paródias de intelectuais e cientistas cujas
maquinações eram frustradas pelo prático mocinho. A imaginação perdia para a ação porque a imaginação, como a hesitação, é a ação retardada, a ação precedida do pensamento,
do pavor ou, no caso do bandido, da volúpia do significado.
O Mal era inteligência demais, era a obsessão com a morte,
enquanto o Bem — o que ficava com a mocinha — era o que
não pensava na morte. Quando recapturava o mocinho, mesmo sabendo que ele escapara da morte tão cuidadosamente
orquestrada com os ratos e os jacarés, o bandido ainda não
lhe dava o rápido e definitivo tiro na testa, para ele aprender.
Deixava-o amarrado sobre uma tábua que lentamente, solenemente, se aproximava de uma serra circular, da qual o
herói obviamente escaparia de novo. E, se pegasse o mocinho pela terceira vez, nem assim o bandido abandonaria sua
missão didática. Sucumbiria à sua outra compulsão fatal, a
de falar demais. Mesmo o tiro na testa precisava de uma frase antes, uma explicação, um jogo de palavras. Geralmente
era o que dava tempo para a chegada da polícia e a prisão do
vilão, derrotado pela literatura.
Pobres vilões. E nós, inconscientemente, torcíamos pelos burros.
(Luis Fernando Verissimo. O suicida e o computador, 1992.)
1 gramofone: antigo toca-discos.
2 Wagner: Richard Wagner, compositor alemão do século XIX.
De acordo com o cronista,