“Um dos fenômenos mais interessantes, e de rápida consolidaç...
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Q2024775
Português
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As palavras e o tempo
Ao chegar criança em Curitiba, em 1961, meu primeiro choque foi linguístico: um vendedor de rua oferecia “dolé”. Para quem
não sabe, era picolé. O nome “dolé” soava-me tão estranho que só a custo parecia se encaixar naquele objeto que eu sempre
conhecera como “picolé”. Os anos passaram e os dolés sumiram. A última vez que os vi foi nas ruínas de uma parede no litoral,
onde se podia ler em letras igualmente arruinadas pelo tempo: “Fábrica de dolés”.
Com o tempo, as estranhezas linguísticas vão ganhando outro contorno, mas sempre com a marca que o tempo vai deixando
nas formas da língua. Lembro que, pouco a pouco, comecei a ouvir pessoas dizendo “emprestei do Fulano”, quando para meus
ouvidos o normal seria “peguei emprestado do Fulano”; ou então emprestamos a ele. “Emprestar” só poderia ser “para alguém”; o
contrário seria “pedir emprestado”. Mas em poucos anos o estranho passou a ser “pedir emprestado”, e a nova forma foi para o
Houaiss. Um linguista diria que se trata de uma passagem sutil de formas analíticas para formas sintéticas. [...]
A língua não para, mas seus movimentos nunca são claramente visíveis, assim como jamais conseguimos ver a grama
crescer – súbito, parece que ela já foi trocada por outra. O advento da informática e dos computadores é um manancial sem fim de
palavras e expressões novas, ou expressões velhas transmudadas em outras. Um dos fenômenos mais interessantes, e de rápida
consolidação, foi também a criação de verbos para substituir expressões analíticas. “Priorizar” ou “disponibilizar”, que parecem tão
comuns, com um jeitão de que vieram lá do tempo de Camões, na verdade não terão mais de 20 anos – e também já estão no
Houaiss. Na antiquíssima década de 1980, dizíamos “dar prioridade a” e “tornar disponível”. Bem, as novas formas ainda têm uma
aura tecnocrática. Em vez de “disponibilizar os sentimentos”, preferimos ainda “abrir o coração”. Mas outras novidades acertam na
veia: “deletar” entrou definitivamente no dia a dia das pessoas. Já ouvi alguém confessar: “Deletei ela da minha vida”.
Piorou a língua? De modo algum. A língua continua inculta e bela como sempre, como queria o poeta. Ela segue adiante –
nós é que envelhecemos, e, às vezes, pela fala, parecemos pergaminhos de um tempo que passou.
Cristóvão Tezza, Gazeta do Povo, 20 set.2011.
“Um dos fenômenos mais interessantes, e de rápida consolidação, foi também a criação de verbos para substituir
expressões analíticas. “Priorizar” ou “disponibilizar”, que parecem tão comuns, com um jeitão de que vieram lá do
tempo de Camões, na verdade não terão mais de 20 anos – e também já estão no Houaiss.” A partir desse trecho, é
correto afirmar: