TEXTO I
Rafael Mateus Machado
- Ô, de casa!
Lá de dentro, um homem de cabelos cinzas e botas bem engraxadas apareceu na janela, acenou com as
mãos mandando que ele entrasse. Dentro do destacamento, o amistoso policial disse ao rapaz para que
tomasse assento. Pedro se sentou em um tamborete junto a uma espécie de balcão e ficou a observar por
uma porta aberta o homem terminar de passar um café em um coador de pano. Derramou um pouco,
atrapalhou-se com a garrafa, quase se queimou com o vapor e, por fim, o cheiro da bebida se espalhou pelos
cômodos. Depois, já com dois copos nas mãos, voltou-se para o rapaz, entregou-lhe um e perguntou:
- E então? Em que posso te ajudar?
Pedro estranhou o tratamento daquele homem, com aquelas três divisas no braço. Como podia um policial
ter aquela cara de homem feliz saindo do cabaré?! Pedro ignorava o fato de que, junto com o prefeito, o
sargento mandava na cidade. Tinha um salário digno e conhecia todo o povo daquelas paragens. Pedro não
sabia que normalmente quem procurava a polícia por aquelas bandas era um conhecido para dar um bom
dia, trocar um dedo de prosa, beber um café ou deixar uma dúzia de ovos de presente. E era esse mar calmo
que fazia do sargento um calmo capitão. Raramente tirava seu revólver do cinturão e, quando acionado,
quando alguém brigava no bar, batia na mulher ou brigava com o vizinho por causa de divisa de terras,
normalmente ele decidia as demandas com uma boa conversa.
Bastava o sargento chegar que os arrelientos amenizavam os ânimos para a contenda. Assim, como ninguém
era bruto com o sargento, o sargento não era, a priori, bruto com ninguém. Pedro desconhecia o fato de que
era bom ser da polícia. Como todo o mundo, havia construído um entendimento de que a Força Pública era
formada por homens rudes, avessos aos bons modos e pouco afeitos aos sorrisos e às conversas. Como as
demais pessoas, Pedro rotulava os homens da lei com base nos momentos em que eles estavam a lidar com
homens rudes, desaparelhados de bons modos e por vezes violentos. O olhar incompleto e míope de toda a
gente fazia com que pensassem que os policiais seriam uma coisa que não eram.
O sargento não era um sujeito religioso, mas entendia o caráter divino da autoridade. Sabia que deveria fazer
o seu melhor com a sua farda. Entendeu isso ouvindo umas palavras do padre Juca na saída de uma missa
de domingo: "Tudo que lhe é dado lhe será cobrado!".
E foi assim que Pedro conheceu o sargento Robson Aloísio: bebendo um café e sentado em um tamborete.
Reconhecendo no policial um amigo, foi que Pedro contou algumas passagens de sua vida e disse a ele que
estava cansado de correr riscos. Que não tinha vocação para desordeiro. E que, enfim, queria entrar para a
polícia. O sargento riu. Era a primeira vez que ouvia alguém dizer que queria ser policial para não correr
riscos.
(...)
Escutou do novo amigo as instruções para ser aceito na Polícia Militar. Tinha de voltar para o banco da sala
de aula. Mas que não se preocupasse demais, pois a escola especial para adultos é mais ligeira do que a
para as crianças. E ali mesmo naquela cidadezinha, havia uma escola assim. Ia ter que pegar diariamente a
lotação da roça para a cidade. Era demorado e caro o transporte, mas temporário. Precisaria de algum
dinheiro para se manter, já que havia acabado de abandonar o caminhão, o carvão e a estrada. Pensou nas possibilidades, traçou sua estratégia e concluiu que era possível. Antes de esvaziar a caneca de café já tinha
feito todo seu plano. Restava a parte principal: executá-lo.
Machado, Rafael Mateus. O homem que enganava a morte. Maringá: Viseu, 2018. Páginas 183 e 184.
(Adaptado).