Texto 1A2-II
Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o
papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam
descansado, a beira de uma poça: a fome apertara demais os
retirantes e por ali não existia sinal de comida. A cachorra Baleia
jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava
lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas
brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú
de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano
também às vezes sentia falta dele, mas logo a recordação
chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto da farinha
acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na caatinga. Sinha
Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas
segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos
antigos que não se relacionavam: festas de casamento,
vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um grito
áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava
furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera
de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se
declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia
deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E
depois daquele desastre viviam todos calados, raramente
soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado
inexistente, e latia arremedando a cachorra.
As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano
aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos.
As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe
aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas. Os
calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam.
Num cotovelo do caminho, avistou um canto de cerca,
encheu-o a esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A
voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar a força.
Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca,
subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia tempo que
não viam sombra.
Graciliano Ramos. Vidas secas. 107.ª edição (com adaptações).