Sobre simplicidade e sabedoria
Pediram-me que escrevesse sobre simplicidade e sabedoria. Aceitei alegremente o convite sabendo que, para que tal
pedido me tivesse sido feito, era necessário que eu fosse velho.
Os jovens e os adultos pouco sabem sobre o sentido da simplicidade. Os jovens são aves que voam pela manhã: seus voos
são flechas em todas as direções. Seus olhos estão fascinados por dez mil coisas. Querem todas, mas nenhuma lhes dá descanso.
Estão sempre prontos a de novo voar. Seu mundo é o mundo da multiplicidade. Eles a amam porque, nas suas cabeças, a
multiplicidade é um espaço de liberdade. Com os adultos acontece o contrário. Para eles, a multiplicidade é um feitiço que os
aprisionou, uma arapuca na qual nunca caíram. Eles a odeiam, mas não sabem como se libertar. Se, para os jovens, a
multiplicidade tem o nome de liberdade, para os adultos, a multiplicidade tem o nome de dever. Os adultos são pássaros presos
nas gaiolas do dever. A cada manhã dez mil coisas os aguardam com as suas ordens (para isso existem as agendas, lugar onde
as dez mil coisas escrevem as suas ordens!). Se não forem obedecidas haverá punições.
No crepúsculo, quando a noite se aproxima, o voo dos pássaros fica diferente. Em nada se parece com o seu voo pela
manhã. Já observaram o voo das pombas no fim do dia? Elas voam numa única direção. Voltam pra casa, o ninho. As aves, ao
crepúsculo, são simples. Simplicidade é isso: quando o coração busca uma coisa só.
Na multiplicidade nos perdemos: ignoramos o nosso desejo. Movemo-nos fascinados pela sedução das dez mil coisas.
Acontece que, como diz o segundo poema do Tao-Te-Ching, “as dez mil coisas aparecem e desaparecem sem cessar”. O caminho
da multiplicidade é um caminho sem descanso. Cada ponto de chegada é um ponto de partida. Cada reencontro é uma
despedida. É um caminho onde não existe casa ou ninho.
O caminho da ciência e dos saberes é o caminho da multiplicidade. Não há fim para as coisas que podem ser conhecidas e
sabidas. O mundo dos saberes é um mundo de somas sem fim. É um caminho sem descanso para a alma. Não há saber diante
do qual o coração possa dizer: “Cheguei, finalmente, ao lar”. Saberes não são lar.
Diz o Tao-Te-Ching: “na busca do conhecimento a cada dia se soma uma coisa. Na busca da sabedoria a cada dia se diminui
uma coisa”. Sabedoria é a arte de degustar. A arte de degustar, distinguir, discernir. O homem dos saberes, diante da
multiplicidade, “precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço”. Mas o
sábio está à procura das “coisas dignas de serem conhecidas”. A sabedoria é a arte de reconhecer e degustar a alegria. Nascemos
para a alegria.
A saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo que ela provou e aprovou. Aprovadas foram as expectativas que deram
alegria. O que valeu a pena está destinado à eternidade. A saudade é o resto da eternidade refletido no rio do tempo.
Ando pelas cavernas da minha memória. Há muitas coisas maravilhosas. Mas essas memórias, a despeito do seu tamanho,
não me fazem nada. Não sinto vontade de chorar. Não sinto vontade de voltar.
Aí eu consulto o meu bolso da saudade. Lá se encontram pedaços do meu corpo, alegrias. Observo atentamente, e nada
encontro que tenhas brilho no mundo da multiplicidade. São coisas pequenas, que me nem foram notadas por outras pessoas.
Diz Guimarães Rosa que “felicidade só em raros momentos de distração...” Certo. Ela vem quando não se espera, em
lugares que não se imagina. Dito por Jesus: “É como o vento: sopra onde quer, não sabe donde vem nem para onde vai...”.
Sabedoria é a arte de provar e degustar a alegria, quando ela vem. Mas só dominam essa arte aqueles que têm a graça da
simplicidade. Porque a alegria só mora nas coisas simples.
(ALVES, Rubem. In Concerto para Corpo e Alma. Adaptado.)