TEXTO 1
Mais uma distorção: comunicar é o que importa
Marcos Bagno
Existe na nossa cultura escolar, no que diz respeito ao ensino de língua, uma ideia muito entranhada
e que precisa ser veementemente exposta e combatida. É a noção de que “o que importa é comunicar”, de
que “se a mensagem foi transmitida, tudo bem”, e coisas assim. É fundamental deixar bem claro aqui que
não, não e não — essa é uma visão muito pobre e mesquinha do que é a língua e dos mecanismos sociais
que a envolvem. Repetir essa ideia é algo extremamente prejudicial para uma boa educação linguística.
Essa ideia é uma deturpação violenta de teorias linguísticas sofisticadas que, lidas pela metade ou
só na superfície (quando são lidas), se transformam em conceitos tomados como “verdades científicas” pelos
que não se empenham em estudar mais a fundo. E, para piorar, serve de acusação contra os linguistas por
parte de pessoas que pretendem, com isso, desqualificar o trabalho dos pesquisadores e tentar preservar a
ferro e fogo uma concepção de “língua culta” obtusa, obscura e irreal.
Essas pessoas alegam que, para os linguistas, “vale tudo”, que “o importante é comunicar”, que “não
é preciso corrigir os alunos”, entre outras acusações injustas que não correspondem a nada que linguistas
sérios já escreveram ou disseram em público. Para se opor, então, ao que os linguistas jamais disseram, os
defensores de uma concepção de língua (e de sociedade) arcaica e pré-científica apregoam o “ensino da
gramática” e a inculcação de uma escorregadia “norma culta”.
A língua é muito mais do que um simples instrumento de comunicação. Ela é palco de conflitos sociais,
de disputas políticas, de propaganda ideológica, de manipulação de consciências, entre muitas outras coisas.
A manipulação social da língua nos leva a votar nessa ou naquela pessoa, a comprar tal ou qual produto, a
admitir que determinado evento ocorreu de determinada maneira e não de outra, a aderir a uma ideia, a
acreditar nessa ou naquela religião, e por aí vai, e vai longe...
No mercado financeiro, por exemplo, tudo se faz por meio das palavras. Os títulos negociados na
Bolsa de Valores não têm existência concreta, são mera abstração, dependem exclusivamente do que se diz
ou do que se deixa de dizer: basta lançar um boato sobre uma empresa dizendo que ela está para falir, e o
valor das ações despenca. O que alguns chamam de “invasão” (de terras, por exemplo) outros chamam de
“ocupação” (de áreas improdutivas). Onde alguns falam de “terrorismo” outros preferem falar de “revolução”.
Para os fiéis de uma determinada religião, certos atos são “pecados”, enquanto para os de outra são
perfeitamente justificados e bem-vindos. O que o governo americano chamou de “Guerra do Iraque” muitos
analistas classificam simplesmente de “invasão”, já que os iraquianos não fizeram nada contra os Estados
Unidos.
A língua é a nossa faculdade mais poderosa, é o nosso principal modo de apreensão da realidade e
de intervenção nessa mesma realidade. Vivemos mergulhados na linguagem, não conseguimos nos imaginar
fora dela — estamos mais imersos na língua do que os peixes na água.
Além disso, a língua é um fator importantíssimo na construção da identidade de cada indivíduo e de
cada coletividade. Ela tem um valor simbólico inegável, é moeda de troca, é arame farpado capaz de incluir
alguns e excluir muitos outros. É pretexto para exploração, espoliação, discriminação e até mesmo massacres
e genocídios, como já vem expresso num conhecido episódio bíblico.
Numa guerra entre duas tribos de Israel, os galaaditas e os efraimitas, os primeiros se apoderaram
dos vaus do Jordão, trechos rasos que podiam ser atravessados a pé. Quando alguém atravessava o rio, os
galaaditas mandavam que pronunciasse a palavra shibboleth (“espiga”): na variedade linguística dos
efraimitas, a palavra era pronunciada sibboleth, sem o “chiado” inicial. Quando ouviam essa pronúncia, os
galaaditas “então os matavam nos vaus do Jordão. Caíram naquele tempo quarenta e dois mil homens de
Efraim” (Juízes 12,4-6). Por isso o termo shibboleth é usado para designar qualquer elemento social
empregado para discriminar ou mesmo exterminar uma pessoa ou grupo de pessoas.
Portanto, não se pode admitir essa falácia de que “o importante é comunicar”. Abrir a boca para falar
é se expor, inevitavelmente, aos julgamentos sociais, positivos e negativos, que configuram nossa cultura.
Falar é comunicar, sim, mas não “transmitir uma mensagem” como ingenuamente se pensa: é comunicar
quem somos, de onde viemos, a que comunidade pertencemos, o quanto estamos (ou não) inseridos nos
modos de ver, pensar e agir do nosso interlocutor.
Assim, numa sociedade como a brasileira, tradicionalmente excludente e discriminadora, é
fundamental que a escola possibilite a seus aprendizes o acesso ao espectro mais amplo possível de modos
de expressão, a começar pelo domínio da escrita e da leitura, direito inalienável de qualquer pessoa que viva
num país republicano e democrático. A leitura e a escrita, o letramento, enfim, abre as portas de incontáveis
mundos discursivos, aos quais os aprendizes só vão ter acesso por meio da escolarização institucionalizada.
(BAGNO, Marcos. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2011)