Texto I
Nizia Figueira, sua criada
(Mário de Andrade)
Belazarte me contou:
Pois eu acho que tem.
Você já sabe que sou cristão...
Essas coisas de felicidade e infelicidade não têm significado
nenhum, si a gente se compara consigo mesmo. Infelicidade
é fenômeno de relação, só mesmo a gente olhando pro
vizinho é que diz o “atendite et videte”1
. Macaco, olhe o seu
rabo! isso sim, me parece o cruzamento da filosofia cristã
com a precisão de felicidade neste mundo duro. Inda é bom
quando a gente inventa a ilusão da vaidade, e em vez de
falar que é mais desinfeliz, fala que é mais feliz... Toquei em
rabo, e estou lembrando o caso do elefante, você sabe? ...
Pois não vê que um dia o elefante topou com uma penuginha
de beijaflor caída numa folha, vai, amarrou a penuginha no
rabo com uma corda grossa, e principiou todo passeando na
serrapilheira2 da jungla3
. Uma elefanta mocetona4 que já
estava carecendo de senhor pra cumprir seu destino, viu o
bicho tão bonito, mexe pra cá, mexe pra lá, ondulando feito
onda quieta, e engraçou. Falou assim: “Que elefante mais
bonito, porca la miséria!” Pois ele virou pra ela encrespado e:
“Dobre a língua, sabe! Elefante não senhora! sou beijaflor.”
E foi-se. Eis aí um tipo que ao menos soube criar felicidade
com uma ilusão sarapintada. É ridículo, é, mas que diabo!
nem toda a gente consegue a grandeza de se tomar como
referência de si mesmo. [...]
1 Expressão latina , do livro bíblico das Lamentações: “Olhai e vede”
(Lm 1,12)
2 camada de folhas secas
3 bosque
4 moça robusta e formosa