Um rato na rede
Transcrevo um encontro com um rato, ocorrido numa aldeia dos nativos Apinayé, nos anos 60.
“Insone, senti um tremor nas cordas da rede. Com a lanterna, vi um rato saindo dos meus pés. O velhaco me olhou,
passou velozmente pelo punho da rede e entrou na palha do
telhado. Sentado, examinei trêmulo cada dedo. Foi um exercício de ioga ver o meu pé; no esforço, derrubei a lanterna. Conformado, vi no dedão do pé direito um arranhão sangrento. Era
o presente do rato de merda que fez meu dedão de queijo...
Eu volto desconfiado para a rede, só que nela entro com
um pé calçado de meias e botas. Numa das mãos, empunho
a lanterna; na outra, o revólver. Cubro-me parcialmente com
o lençol e espero atento pelo rato.
Esmiúço com a lanterna o teto e ouço apenas as batidas
do meu coração. O rato sumiu e no seu lugar sinto minha
perna direita ficar dormente. Tenho a certeza de que estou
envenenado. Pulo da rede, abro minha caixa de primeiros
socorros, tiro dela um bisturi (para casos de emergências) e
me preparo para cortar o dedo no local da mordida para que
o sangue renovado expulse o veneno. Agarro meu próprio
pé, dobro a perna direita sobre o joelho esquerdo, meço com
cautela o lugar onde farei a incisão que vi muitas vezes no
cinema os mocinhos fazendo em si próprios sem o menor
problema, derramo na “área” a ser cortada o mercúrio cromo,
que escorre pelo pé, mas quando encosto no dedo a lâmina
fria, falta-me a coragem, o tutano, a força dos verdadeiros
heróis. Contento-me em fazer um bom e útil curativo.
Afinal, justifico, os ratos do sertão não são venenosos
como os seus irmãos urbanos. Desisto da caçada do roedor
por incompetência e da autocirurgia por covardia.
Deprimido, desfaço-me do aparato de cirurgião e, insone
e com medo da volta do rato, volto ao balanço da rede onde
acabo dormindo com saudade de tempos normais.”
(Roberto DaMatta. Em: https://www.estadao.com.br/, 02.11.2022. Adaptado)