Língua Portuguesa: uma herança maldita?
Há uns bons anos, o debate público sobre a língua trazia
como novidade a noção de variante linguística, que, por si só,
tornava obsoleta a velha noção de erro gramatical. O que poderia haver, em determinadas circunstâncias, era o desvio da
norma-padrão, sendo esta uma das variedades da língua – notadamente a de maior prestígio social – entre outras também
válidas.
Nessa variante, rechaçada pelas classes letradas, a estrutura sintática é mais sintética que a da norma-padrão: o pronome “nós” já assinala o sujeito, que não precisaria ser repetido
na desinência verbal “-mos” de “pegamos”, e o artigo “os” já
assinala o plural, que não precisaria ser repetido na desinência
de plural “-s” “de peixes”. Em suma: “Nós pegamos os peixes” e
“Nós pega os peixe” têm o mesmo grau de eficiência comunicativa, sendo variantes de estrato social (chamadas “variantes
diastráticas”).
Se, de um ponto de vista essencialmente gramatical, as
duas construções são válidas, a sociedade se vê obrigada a
aceitar que o ensino da norma-padrão é elitista, pois valoriza
o registro da classe dominante. A discussão desloca-se, portanto, do terreno da gramática para o da sociologia.
Sendo a norma-padrão a norma dos estratos mais altos
e mais bem escolarizados da sociedade, claro está que essas
pessoas são os seus defensores naturais (ou assim se presume). Os estratos menos escolarizados, usuários de variantes de menor prestígio, por sua vez, dificilmente se engajam
nesse debate, que é, afinal, acadêmico. A classe média, no entanto, é o estrato que parece mais preocupado com a questão
do preconceito linguístico, decorrente dessa diferença de prestígio entre as variantes.
Que fazer, então, para eliminar o odioso preconceito linguístico? Foram (e têm sido) muitos os textos e livros publicados
sob essa rubrica, mas, na prática, o que se via era uma atitude
condescendente em relação às variantes de baixo prestígio e a
continuação da adoção da norma-padrão como cânone nas
escolas. O professor passou a levar a questão das variantes para
a sala de aula, mas continuava a ensinar a norma-padrão, que é,
afinal, a variante mais cultivada pelos escritores da tradição e,
em razão de seus recursos, aparentemente mais apropriada
para a escrita de textos filosóficos, científicos e jurídicos, entre
outros.
Hoje, esse debate ganhou novos contornos. A norma-padrão passou do status de variante elitista, que deveria ser
apreendida durante a vida escolar, ao de língua do colonizador,
tida agora como um repositório ideológico eurocêntrico, que se
impôs no Brasil mediante o apagamento de diferentes matrizes
culturais. Estamos diante de um problema bem mais complexo.
Conquanto se fale muito no apagamento de importantes
matrizes culturais, especialmente as dos povos indígenas e as
dos africanos, suas marcas estão presentes no português do Brasil. A olho nu, estão no léxico comum e na toponímia (nomes
de lugares, cidades, acidentes geográficos, rios etc.) e, mais que
isso, pesquisadores têm buscado mostrar que o ritmo de nossa
fala e diversas características fonéticas do nosso português deitam raízes na influência africana em solo brasileiro.
A língua tem o poder de absorver e refletir os jogos de
forças que se travam na sociedade. Mais importante do que
cascavilhar o dicionário em busca de expressões de conotação negativa “que devem ser evitadas” é empreender a luta
concreta em defesa dos direitos de todos os segmentos oprimidos, porque a língua, necessariamente, vai refletir as conquistas reais e concretas de todos.
Mesmo essa adesão, porém, ainda que bastante presente
no ambiente universitário, é pouca coisa diante da discussão
sobre “decolonização”, a qual, no plano da língua, se corporifica,
mais uma vez, na ojeriza à norma-padrão. A crítica, agora, parece subir de tom. Seu alvo não são mais as nossas “elites letradas” (as que aplicam as regras de concordância), mas a nossa
herança cultural eurocêntrica. Que fazer? Abolir a norma-padrão?
Queimar as gramáticas da língua portuguesa em praça pública?
Parece mais sensato deixar que a norma-padrão, que é
uma norma de referência para a produção de textos escritos
formais, vá sendo naturalmente alargada ou modificada, como,
de resto, tem ocorrido na história. A ideia de que a diversidade
deve substituir a unidade, pois esta seria falsa e opressiva enquanto aquela seria real, leva-nos a imaginar, no futuro, um
Estado das dimensões do Brasil como um território linguisticamente fragmentado. Essa questão, como se pode intuir, é política. Aguardemos
(NICOLETI, Thaís. Língua portuguesa: uma herança maldita? Folha de
São Paulo, 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/
thais-nicoleti/2022/08/lingua-portuguesa-uma-heranca-maldita.shtml.
Acesso em: 29/08/2022. Adaptado.)