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No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é
Marcelo Leite
A pele é morena, pega cor fácil no sol. O cabelo grosso,
que já foi mais preto, espeta rápido quando se corta curto.
Quase sem pelos no torso, barba rala e falhada, olhos de um
castanho escuro, altura mediana.
O biótipo de brasileiro da gema se estriba no DNA. Há
32% de conteúdo genético característico de ameríndios em
seus cromossomos. Com 19% de origem africana na mistura,
minha ascendência europeia fica em minoria, apesar dos
sobrenomes Nogueira e Leite, Camargo e Toledo.
Queria mesmo era chamar Aikanã, Aikewara, Akuntsu,
Amanayé, Amondawa, Anacé, Anambé, Aparai, Apiaká,
Apinayé, Apurinã, Aranã, Arapaso, Arapium, Arara, Araweté,
Arikapu, Aruá, Ashaninka, Atikum, Asurini, Awá ou Aweti.
Ou então Baniwa, Barasana, Bororo. Canela, Chiquitano,
Cinta-Larga. Deni, Desana, Dow.
Quem sabe Enawenê-Nawê. Fulni-ô. Gamela. Huni Kuin.
Ikpeng. Jarawara. Kantaruré. Menky Manoki. Ñandeva. Oro
Win. Palikur. Rikbaktsa. Shanenawa. Tumbalalá. Umutina.
Uru-Eu-Wau-Wau. Wauja. Xokleng. Xingu. Yuhupde. Zoró.
Uma pequena amostra da diversidade indígena que sobrevive, hoje, no Brasil. São 254 desses nomes sonoros na
lista. Muito provavelmente ela era ainda mais rica e poética
antes da chegada das caravelas, do ferro e do sarampo.
Falam-se nas aldeias mais de 150 línguas e dialetos,
2% do total mundial, estimado em cerca de 7000 idiomas.
Antes do século 16, acredita-se, teriam sido mais de 1000, no
atual território nacional. Bastaram 519 anos para extinguir
850 delas.
O extermínio não impediu a miscigenação, ao contrário.
Os portugueses se serviam das mulheres nativas ou das
pobres escravas de África, quase sempre de modo forçado
ou imposto; terá havido também algum amor.
Sem nunca ter sido formalmente racista, o país continua segregado. A muito custo os negros conquistaram certo
espaço na TV e nas capas de revista, quase nenhum nas
baladas (exceção feita a jogadores de futebol e artistas).
E os índios?
Seguem invisíveis.
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, numa de suas
frases sempre antológicas, diz que todo brasileiro é índio –
exceto quem não é.
(Marcelo Leite, No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é.
Folha de S. Paulo: 1o
.09.2019. Adaptado)