Questões de Português - Colocação Pronominal para Concurso
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TEXTO I
É assim que acontece a bondade
Rubem Alves
(...)
O que pode ser ensinado são as coisas que moram no mundo de fora:
astronomia, física, química, gramática, anatomia, números, letras, palavras.
Mas há coisas que não estão do lado de fora, coisas que moram dentro do corpo.
Estão enterradas na carne, como se fossem sementes à espera…
Sim, sim! Imagine isto: o corpo como um grande canteiro!
Nele se encontram, adormecidas, em estado de latência, as mais variadas sementes.
Elas poderão acordar, como a Bela Adormecida acordou com um beijo.
Mas poderão também não brotar.
Tudo depende…
As sementes não brotarão se sobre elas houver uma pedra.
E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas…
De fato, muitas plantas precisam ser arrancadas, antes que cresçam:
as pragas, tiriricas, picões…
Uma dessas sementes é a “solidariedade”.
A solidariedade não é uma entidade do mundo de fora,
ao lado de estrelas, pedras, mercadorias, dinheiro, contratos.
Se ela fosse uma entidade do mundo de fora poderia ser ensinada e produzida.
A solidariedade é uma entidade do mundo interior.
Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz.
A solidariedade tem de brotar e crescer como uma semente…
Veja o ipê florido!
Nasceu de uma semente.
Depois de crescer não será necessária nenhuma técnica,
nenhum estímulo, nenhum truque para que ele floresça.
Angelus Silesius, místico antigo, tem um verso que diz:
“A rosa não tem porquês. Ela floresce porque floresce”.
O ipê floresce porque floresce.
Seu florescer é um simples transbordar natural da sua verdade.
A solidariedade é como o ipê:
nasce e floresce.
Mas não em decorrência de mandamentos éticos ou religiosos.
Não se pode ordenar: “Seja solidário!”
A solidariedade acontece como um simples transbordamento:
as fontes transbordam…
Já disse que solidariedade é um sentimento.
É esse o sentimento que nos torna humanos.
A solidariedade me faz sentir sentimentos que não são meus, que são de um outro. Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo balas num semáforo.
Ela me pede que eu compre um pacotinho das suas balas.
Eu e a criança – dois corpos separados e distintos.
Mas, ao olhar para ela, estremeço:
algo em mim me faz imaginar aquilo que ela está sentindo.
E então, por uma magia inexplicável, esse sentimento imaginado se aloja junto dos meus próprios sentimentos.
Na verdade, desaloja meus sentimentos, pois eu vinha, no meu carro, com sentimentos leves e alegres,
e agora esse novo sentimento se coloca no lugar deles.
O que sinto não são meus sentimentos.
Foram-se a leveza e a alegria que me faziam cantar.
Agora, são os sentimentos daquele menino que estão dentro de mim.
Meu corpo sofre uma transformação:
ele não é mais limitado pela pele que o cobre.
Expande-se.
Ele está agora ligado a um outro corpo que passa a ser parte dele mesmo.
Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicção religiosa, nem por um mandamento ético.
É o jeito natural de ser do meu próprio corpo, movido pela solidariedade.
Pela magia do sentimento de solidariedade meu corpo passa a ser morada do outro.
É assim que acontece a bondade.
O menino me olhou com olhos suplicantes.
E, de repente, eu era um menino que olhava com olhos suplicantes…
Disponível em https://rubemalvesdois.wordpress.com/2010/09/11/e-assim-que-acontece-a-bondade/
Texto CB1A1-I
Durante um seminário sobre a antropologia do dinheiro ministrado na Escola de Economia e Ciência Política de Londres, Jock Stirratt descreveu em um gráfico os usos a que alguns pescadores do Sri Lanka que prosperaram nos últimos anos submetiam sua riqueza recém-adquirida. A renda desses pescadores, antes muito baixa, deu um grande salto desde que o gelo se tornou disponível, o que possibilitou que seus peixes alcançassem, em boas condições, os mercados distantes da costa, onde atingiram preços altos. No entanto, as aldeias de pescadores ainda permanecem isoladas e, à época do estudo, não tinham eletricidade, estradas nem água encanada. Apesar desses desincentivos aparentes, os pescadores mais ricos gastavam os excedentes de seus lucros na compra de aparelhos de televisão inutilizáveis, na construção de garagens em casas a que automóveis sequer tinham acesso e na instalação de caixas-d’água jamais abastecidas. De acordo com Stirratt, isso tudo ocorre por uma imitação entusiasmada da alta classe média das zonas urbanas do Sri Lanka.
É fácil rir de despesas tão grosseiramente excêntricas, cuja aparente falta de propósito utilitário dá a impressão de que, por comparação, pelo menos parte de nosso próprio consumo tem um caráter racional. Como os objetos adquiridos por esses pescadores parecem não ter função em seu meio, não conseguimos entender por que eles deveriam desejá-los. Por outro lado, se eles colecionassem peças antigas de porcelana chinesa e as enterrassem, como fazem os Ibans, seriam considerados sensatos, senão encantados, tal como os temas antropológicos normais. Não pretendo negar as explicações óbvias para esse tipo de comportamento ― ou seja, busca de status, competição entre vizinhos, e assim por diante. Mas penso que também dever-se-ia reconhecer a presença de uma certa vitalidade cultural nessas atrevidas incursões a campos ainda não inexplorados do consumo: a habilidade de transcender o aspecto meramente utilitário dos bens de consumo, de modo que se tornem mais parecidos com obras de arte, carregados de expressão pessoal.
Alfred Gell. Recém-chegados ao mundo dos bens: o consumo entre os Gonde Muria. In: Arjun Appadurai (org). A vida social das coisas: mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Eduff, 2008, p. 147-48 (com adaptações).
TEXTO I
O macacão branco
Sejamos honestas, colegas de trabalho: quem de nós pode vestir um macacão branco decotado na frente e nas costas, colado ao corpo, sem antes passar por uma lipoescultura, uma sessão de bronzeamento e ficar duas semanas sem comer? Resposta no final dessa coluna.
Não teria adjetivos suficientes para comentar o show que Maria Rita fez no Anfiteatro Pôr do Sol, semana passada, cantando músicas da sua mãe, Elis Regina. O espetáculo foi perfeito do início ao fim, e São Pedro ainda deu uma canja, oferecendo um entardecer de cinema, com direito a uma lasca de lua, céu estrelado e brisa suave. Se Elis não fosse gaúcha, teria se naturalizado naquele instante, em algum cartório no céu.
Mas voltemos a Maria Rita. Toda de branco, ela entrou no palco com uma túnica diáfana que ia até os pés: praticamente um anjo de bons modos. Até que, quatro ou cinco músicas depois do início do show, ela retirou a túnica e ficou só de macacão branco decotado, com as costas de fora, colado no corpo. Pensei: é peituda essa mulher.
Peituda porque, além de peito, Maria Rita tem coxa, tem bunda, tem barriguinha, tem sustância, tem o corpo da brasileira típica, que passa longe das esquálidas das revistas, das ossudas das passarelas. A numeração de Maria Rita não é 36, mas vestiu aquele macacão branco como se fosse.
Quaquaraquáquá, quem riu? Quaquaraquáquá, foi ela. Cantando Vou Deitar e Rolar e outros tantos hits da sua talentosa genitora, Maria Rita rebolou, sambou, jogou charme, braço pra cima, braço pro lado, ajeitadinha no cabelo, caras e bocas, dona e senhora do pedaço e com o namorado bonitão (Davi Moraes, na guitarra) ali na retaguarda, babando – se não estava, deveria. Porque Maria Rita, além de cantar divinamente, mostrava 100% seu lado fêmea, segura e incomparável. Que nem as modelos de revista? Quaquaraquaquá. Muito melhor.
Fiquei matutando depois: como mulher se preocupa com besteira. Usa roupa preta para afinar, veste bermudas compressoras para chapar a barriga, manga comprida para esconder os braços roliços, e mais isso, e aquilo, quando o maior segredo de beleza consta do seguinte: sinta-se num palco, mesmo que nunca tenha chegado perto de um. Imagine-se com 60 mil pessoas te aplaudindo, te admirando pelo que você faz, pelo que você é, imagine-se com o público na mão, pois você é competente e tem uma elegância natural. Conscientize-se de que sua inteligência é superior às suas medidas, que ser magrinha não atrai amor instantâneo, que sua personalidade é um cartão de visitas, que a felicidade é a melhor maquiagem, que ser leve é que emagrece.
E dá-se a mágica.
Quem de nós pode vestir um macacão branco decotado na frente e nas costas, colado ao corpo, sem antes passar por uma lipoescultura, uma sessão de bronzeamento e ficar duas semanas sem comer? Qualquer uma de nós, ora.
MEDEIROS. Martha. A graça da coisa. 1ª ed. Porto Alegre – RS: L&PM, 2013.