Texto 1A1-I
Estou escrevendo um livro sobre a guerra...
Eu, que nunca gostei de ler livros de guerra, ainda que,
durante minha infância e juventude, essa fosse a leitura preferida
de todo mundo. De todo mundo da minha idade. E isso não
surpreende — éramos filhos da Vitória. Filhos dos vencedores.
Em nossa família, meu avô, pai da minha mãe, morreu no
front; minha avó, mãe do meu pai, morreu de tifo; de seus três
filhos, dois serviram no Exército e desapareceram nos primeiros
meses da guerra, só um voltou. Meu pai.
Não sabíamos como era o mundo sem guerra, o mundo da
guerra era o único que conhecíamos, e as pessoas da guerra eram
as únicas que conhecíamos. Até agora não conheço outro mundo,
outras pessoas. Por acaso existiram em algum momento?
A vila de minha infância depois da guerra era feminina.
Das mulheres. Não me lembro de vozes masculinas. Tanto que
isso ficou comigo: quem conta a guerra são as mulheres.
Choram. Cantam enquanto choram.
Na biblioteca da escola, metade dos livros era sobre a
guerra. Tanto na biblioteca rural quanto na do distrito, onde meu
pai sempre ia pegar livros. Agora, tenho uma resposta, um
porquê. Como ia ser por acaso? Estávamos o tempo todo em
guerra ou nos preparando para ela. E rememorando como
combatíamos. Nunca tínhamos vivido de outra forma, talvez nem
saibamos como fazer isso. Não imaginamos outro modo de viver,
teremos que passar um tempo aprendendo.
Por muito tempo fui uma pessoa dos livros: a realidade
me assustava e atraía. Desse desconhecimento da vida surgiu
uma coragem. Agora penso: se eu fosse uma pessoa mais ligada à
realidade, teria sido capaz de me lançar nesse abismo? De onde
veio tudo isso: do desconhecimento? Ou foi uma intuição do
caminho? Pois a intuição do caminho existe...
Passei muito tempo procurando... Com que palavras seria
possível transmitir o que escuto? Procurava um gênero que
respondesse à forma como vejo o mundo, como se estruturam
meus olhos, meus ouvidos.
Uma vez, veio parar em minhas mãos o livro Eu venho
de uma vila em chamas. Tinha uma forma incomum: um
romance constituído a partir de vozes da própria vida, do que eu
escutara na infância, do que agora se escuta na rua, em casa, no
café. É isso! O círculo se fechou. Achei o que estava procurando.
O que estava pressentindo.
Svetlana Aleksiévitch. A guerra não tem rosto de mulher.
Companhia das Letras, 2016, p. 9-11 (com adaptações).