Um peso, duas medidas
Mãe tem que dar conta sozinha, pai precisa
de apoio. Ele nem precisou pedir ajuda, a
ajuda apareceu
Bebel
Soares | 02/06/2024
Janaína chegou com a filha de 8 anos
naquela cidadezinha rural, que fica a 280
quilômetros de Belo Horizonte. O pai dela
estava preso por tráfico, e Janaína não tinha
família nem amigos. A moça conheceu Danilo,
que já morava naquela cidade há uns cinco
anos, e eles acabaram se casando.
Janaína engravidou, e Danilo as levou
para morar longe da cidade. O local ficava a
uns oito quilômetros de distância do Centro,
uma casinha isolada, num local ermo, com
acesso por estrada de terra, sem sinal de
celular. Ele era abusivo, a humilhava e a
privava de tudo.
Danilo foi trabalhar como segurança na
cidade vizinha, passava a semana lá e, nos
fins de semana, ia ver a esposa e as meninas,
sempre indo embora e as deixando com
poucos recursos. Janaína desenvolveu
alcoolismo, bebia cachaça e deixava a filha
mais nova sob os cuidados da mais velha.
Depois passou a vender bebidas em casa, e a
preocupação com a segurança das crianças
passou a ser pauta no serviço social da cidade,
especialmente em relação a abusos sexuais.
As meninas ficaram abandonadas, até que o
Conselho Tutelar interveio e ameaçou tirar a
guarda das meninas.
Foi nesse momento que Janaína pediu
ajuda: ela queria parar de beber, e não
conseguiria fazer isso sozinha. Desde 1967, a
Organização Mundial da Saúde (OMS)
considera o alcoolismo uma doença e é
recomendado que autoridades o encarem
como uma questão de saúde pública. No
entanto, essa mãe, que pedia socorro para se
livrar do vício, foi negligenciada. Mesmo
pedindo ajuda, era ignorada.
Quando o marido aparecia, ele a
humilhava, dizia que ela o envergonhava, não
ajudava e continuava passando as semanas
na cidade onde trabalhava, deixando-a
sozinha com as crianças e com seu vício.
Anos depois, a mãe começou a ter
crises de dor abdominal, indo ao posto de
saúde. Ela precisava ser encaminhada para o
hospital referência da cidade, mas se negava,
não tinha com quem deixar as crianças.
Nessas idas ao posto, ela confidenciava às
profissionais que queria mudar. Que queria se
arrumar, se cuidar, escovar o cabelo, fazer as
unhas, mas não tinha forças para isso.
As dores abdominais voltavam, ela era
encaminhada com urgência para o hospital,
mas não ia, não tinha ninguém para ficar com
as meninas, mesmo numa emergência tão
séria. Não tinha nenhuma rede de apoio. Não
podia contar com ninguém, nem com o próprio
marido.
Na última crise, Janaína faleceu. Ela
tinha 35 anos e foi levada por uma pancreatite
numa manhã de domingo. Estava sozinha,
nem o marido a acompanhava. Ela era uma
mulher linda, saudável, jovem. Sucumbiu ao
etilismo por abandono, pela solidão. Tantas
vezes pediu ajuda, e a ajuda nunca veio.
Nunca conseguiu uma rede de apoio, nem
quando precisava cuidar da própria saúde.
Não pôde se tratar ________ precisava ficar
com as filhas. Perdeu a vida. Saiu da sua terra
para morrer sozinha, numa terra que não era
dela, onde ela era invisibilizada.
Depois de tudo isso, a população se
sensibilizou com o pai – sim, ela teve que dar
conta sozinha, mas o pobre Danilo, não.
“Tadinho do Danilo, coitado... Viúvo, vai
precisar de uma grande rede de apoio, já que
agora está sozinho com as filhas e precisa
trabalhar.”
Um peso, duas medidas. Mãe tem que
dar conta sozinha, pai precisa de apoio. Ele
nem precisou pedir ajuda, a ajuda apareceu.
Mulheres, mães, se solidarizaram com a
situação do pai solo, como se ele fosse a vítima
e Janaína tivesse morrido como uma vilã.
Como se ela tivesse escolhido o abandono.
(Texto baseado no relato de uma amiga que
acompanhou a história. Os nomes foram
alterados para preservar a identidade dos
envolvidos.)
SOARES, Bebel. Um peso, duas medidas.
Estado de Minas, 02 de junho de 2024.
Disponível em:
https://www.em.com.br/colunistas/bebelsoares/2024/06/6869183-um-peso-duasmedidas.html. Acesso em: 02 jun. 2024.
Adaptado.