LÍNGUA PORTUGUESA
De muito procurar
Aquele homem caminhava sempre de cabeça baixa. Por
tristeza, não. Por atenção. Era um homem à procura. À procura de tudo o que os outros deixassem cair inadvertidamente,
uma moeda, uma conta de colar, um botão de madrepérola,
uma chave, a fivela de um sapato, um brinco frouxo, um anel
largo demais.
Recolhia, e ia pondo nos bolsos. Tão fundos e pesados,
que pareciam ancorá-los à terra. Tão inchados, que davam
contornos de gordo à sua magra silhueta.
Silencioso e discreto, sem nunca encarar quem quer que
fosse, os olhos sempre voltados para o chão, o homem passava
pelas ruas desapercebido, como se invisível. Cruzasse duas ou
três vezes diante da padaria, não se lembraria o padeiro de tê-
-lo visto, nem lhe endereçaria a palavra. Sequer ladravam os
cães, quando se aproximava das casas.
Mas aquele homem que não era visto, via longe. Entre
as pedras do calçamento, as rodas das carroças, os cascos dos
cavalos e os pés das pessoas que passavam indiferentes, ele
era capaz de catar dois elos de uma correntinha partida,
sorrindo secreto como se tivesse colhido uma fruta.
À noite, no cômodo que era toda a sua moradia, revirava
os bolsos sobre a mesa e, debruçado sobre seu tesouro espalhado, colhia com a ponta dos dedos uma ou outra mínima
coisa, para que à luz da vela ganhasse brilho e vida. Com isso,
fazia-se companhia. E a cabeça só se punha para trás quando,
afinal, a deitava no travesseiro.
Estava justamente deitando-se, na noite em que bateram à porta. Acendeu a vela. Era um moço.
Teria por acaso encontrado a sua chave? perguntou. Morava sozinho, não podia voltar para a casa sem ela.
Eu... esquivou-se o homem. O senhor, sim, insistiu o moço
acrescentando que ele próprio já havia vasculhado as ruas inutilmente.
Mas quem disse... resmungou o homem, segurando a porta
com o pé para impedir a entrada do outro.
Foi a velha da esquina que se faz de cega, insistiu o jovem
sem empurrar, diz que o senhor enxerga por dois.
O homem abriu a porta.
Entraram. Chaves havia muitas sobre a mesa. Mas não
era nenhuma daquelas. O homem então meteu as mãos nos
bolsos, remexeu, tirou uma pedrinha vermelha, um prego,
três chaves. Eram parecidas, o moço levou as três, devolveria
as duas que não fossem suas.
Passados dias bateram à porta. O homem abriu, pensando
que fosse o moço. Era uma senhora.
Um moço me disse... começou ela. Havia perdido o botão
de prata da gola e o moço lhe havia garantido que o homem
saberia encontrá-lo. Devolveu as duas chaves do outro. Saiu
levando seu botão na palma da mão.
Bateram à porta várias vezes nos dias que se seguiram.
Pouco a pouco espalhava-se a fama do homem. Pouco a
pouco esvaziava-se a mesa dos seus haveres.
Soprava um vento quente, giravam folhas no ar, naquele
fim de tarde, nem bem outono, em que a mulher veio. Não
bateu à porta, encontrou-a aberta. Na soleira, o homem rastreava as juntas dos paralelepípedos. Seu olhar esbarrou na ponta
delicada do sapato, na barra da saia. E manteve-se baixo.
Perdi o juízo, murmurou ela com voz abafada, por favor,
me ajude.
Assim, pela primeira vez, o homem passou a procurar alguma coisa que não sabia como fosse. E para reconhecê-la, caso
desse com ela, levava consigo a mulher.
Saíam com a primeira luz. Ele trancando a porta, ela já a
esperá-lo na rua. E sem levantar a cabeça – não fosse passar
inadvertidamente pelo juízo perdido – o homem começava a
percorrer rua após rua.
Mas a mulher não estava afeita a abaixar a cabeça. E
andando, o homem percebia de repente que os passos dela já
não batiam ao seu lado, que seu som se afastava em outra
direção. Então parava, e sem erguer o olhar, deixava-se guiar
pelo taque-taque dos saltos, até encontrar à sua frente a ponta
delicada dos sapatos e recomeçar, junto deles, a busca.
(COLASANTI, Marina. Histórias de um viajante. São Paulo: Global,
2005.)