Questões de Português - Denotação e Conotação para Concurso
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Para atingir sua expressão fontana Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas que aprendera nos livros.
Desejava atingir a pureza de não saber mais nada. Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo do quintal à busca de uma árvore.
E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo que havia aprendido nos livros.
Depois depositava sobre o enterro uma nobre mijada florestal. Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de insetos, cascas de cigarra etc.
A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia de cores. Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um dejeto de mosca deixado na tela.
Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha escura.
O escuro o iluminava.
(Manoel de Barros. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 385)
No verso – O escuro o iluminava. –, o termo escuro refere-se, literalmente, à cor escura e, figurativamente, pode remeter àquilo que é
Cair do cavalo
Todo mundo um dia cai do cavalo, alguns literalmente inclusive. Cair do cavalo é perder o equilíbrio e o movimento ao mesmo tempo. É bater com toda a força no chão e em seguida ficar prostrado, incapaz de planejar o próximo movimento. Cair do cavalo dói não apenas pelo impacto em si, mas porque nos arranca do conforto da rotina. Paranoicos, hipocondríacos, precavidos, todo mundo cai do cavalo do mesmo jeito, ou seja, sem aviso prévio. E ninguém consegue evitar a perplexidade e a indignação ao verificar, na própria pele, um dos fatos mais banais da existência: coisas dão errado.
Se as tijoladas do destino são mais a regra do que a exceção, deveríamos estar mais preparados para lidar com doenças, separações, mortes, problemas de dinheiro, frustrações em geral – mas o fato é que nunca estamos. Somos comovedoramente ingênuos e distraídos, pelo menos até o primeiro grande tombo.
De volta à terra firme, quando já não há dúvida de que, enfim, sobrevivemos, cada pessoa elabora o sofrimento da forma que pode e sabe. Alguns naufragam na autopiedade, outros veem suas forças exauridas pelo próprio esforço de enfrentar a tormenta. Muitos sentem a necessidade de extrair sentido do sofrimento, atribuindo algum propósito à experiência e propondo a si mesmos uma espécie de jogo do (des)contente: sofri, mas aprendi. (Foi o caso, por exemplo, de Reynaldo Gianecchini, que em todas as entrevistas depois do fim do tratamento do câncer fez questão de falar sobre o lado transcendente da doença.) Há aqueles, porém, em que o sofrimento apenas acentua traços de personalidade que já existiam: o egoísta torna-se intratável, o tímido recolhe-se ainda mais, o extrovertido abusa da grandiloquência. (Lula, na primeira grande entrevista depois do fim do tratamento, falou da doença com a mesma ênfase barroca que usa para florear todos os assuntos, da economia internacional às derrotas do Corinthians: “Se eu perdesse a voz, estaria morto” ou “Estava recebendo uma Hiroshima dentro de mim”.)
O ensaísta francês Michel de Montaigne (1533-1592) também caiu do cavalo – concreta e metaforicamente – e essa experiência foi determinante para tudo o que ele viria a produzir depois. A tese é apresentada na deliciosa biografia do filósofo lançada há pouco no Brasil: Como Viver – Uma biografia em uma pergunta e vinte tentativas de respostas, da escritora inglesa Sarah Bakewell. O acidente quase fatal, sustenta a autora, ajudou Montaigne a desencanar das preocupações com o futuro e prestar mais atenção no presente e nele mesmo. Seus magníficos Ensaios, escritos nos 20 anos seguintes ao acidente, nada mais são do que a tentativa de ficar alerta às próprias sensações e experiências e buscar a paz de espírito – o “como viver” do título.
Para Montaigne, a vida é aquilo que acontece quando estamos fazendo outros planos, e nossa atenção tem que estar o tempo todo sendo reorientada para onde ela deveria estar: aqui e agora. Cair do cavalo pode ser inevitável, mas prestar atenção na paisagem é o que faz o passeio valer a pena.
LAITANO, Claudia. In: Zero Hora, Porto Alegre,
7 de abril de 2012, p. 2.
Remião era um homem calado, hostil mesmo. Tinha emprego, era vigilante noturno de um cemitério bem distante da sua casa, mas não tinha amigos nem parentes com os quais conversasse.
Mas, no último dia de finados, algo surpreendente ocorreu. Quando Margarida chegou ao cemitério, já havia um ramo de flores sobre o túmulo de Remião. Quem o tinha colocado ali? Ela perguntou ao zelador do cemitério. Ninguém sabia. Claro que poderia ter sido um engano de alguém, mas era outra coisa que Margarida imaginava. Pensava em uma bela mulher vestida de preto, chorando e colocando o buquê ali. Quem seria essa mulher?
(Moacyr Scliar, Folha de S.Paulo, 02.11.2009. Adaptado)
Talvez tão importante quanto isso seja a retomada do debate sobre o futuro do Brasil. O longo prazo representa antecipar para o presente a nação que se deseja construir. Só agora, passado o tempo do regime fechado, controlada a inflação e superado o anacronismo do pensamento único, o país parece se permitir ir além e começar a sair das amarras, buscando preparar a nação para a existência de uma sociedade mais justa e um lugar digno entre os povos.
O livro que agora se apresenta nasce com esse espírito crítico, inovador e democrático, mérito inegável de seus organizadores e de todos os autores participantes. Ao longo dos seus capítulos, o leitor encontrará o conjunto de ideias principais que guiam o debate recente sobre o desenvolvimento econômico e social do país, suas oportunidades e desafios. É também uma publicação plural posto que, lado a lado, autores das mais diferentes escolas econômicas expõem seu pensamento, sem qualquer ruído ou pejo, em favor de um debate franco, aberto e visando um país melhor.
Contudo, apesar da diversidade das opiniões e teses, uma constante salta aos olhos dos leitores: em todos os textos, a problemática do Estado é muito presente e, até diria, capaz de fazer intuir sobre a linha de interpretação dos autores. Vejamos, por exemplo, que, por grossas linhas, podemos dividir o conjunto dos capítulos em dois grandes blocos: um reticente em relação ao papel a ser exercido pelo Estado no processo de desenvolvimento econômico de uma nação; e, de outro, autores que julgam impossível alcançar algo complexo como o desenvolvimento sem a forte e planejada presença do Estado na economia.
Nesse caso, o primeiro grupo, mais identificado com o pensamento econômico ortodoxo, defende um conjunto de reformas que deem consistência e valorizem princípios privados de acumulação, empreendedorismo e sucesso de cada agente. Para eles, a ação racional e individualista dos homens, dadas as necessárias garantias e estabilidade de uma ordem verdadeiramente capitalista, ofereceria, inequivocamente, o ambiente fértil para o florescer do progresso e do desenvolvimento. Assim, com o Estado garantindo a ordem, as instituições e a democracia, com preços relativos se posicionando corretamente e a competição livre, se emitiriam os sinais adequados para que se sentissem atraídos os investidores, ajustando, de acordo com aquilo que a sociedade mais valoriza, a alocação de recursos e a produção.
A partir do outro ponto de vista, em meio aos autores mais próximos da tradição heterodoxa do pensamento econômico, o papel do Estado é visto como historicamente indissociável do processo de desenvolvimento e, por isso mesmo, tido como estratégico. Para estes, dada a especificidade histórica da sociedade brasileira e latino-americana, a atuação das forças primárias do mercado leva, inexoravelmente, à manutenção da ordem elitista e concentradora dos frutos do crescimento e do progresso econômico. De maneira um pouco mais forte e tomando emprestada uma observação de Celso Furtado, para eles o desenvolvimento dentro de uma sociedade periférica e dependente não é possível. Assim, segundo esses pensadores, o Estado seria o único agente social capaz de proporcionar, dentro do capitalismo, um ambiente de mudança social em favor de uma ordem mais produtiva, igual, democrática e progressista. Em outros termos: sem Estado, não há desenvolvimento nem soberania.
POCHMANN, M. Prefácio. Sociedade e Economia: estratégias de crescimento e desenvolvimento. Org: João Sicsú e Armando Castelar. Brasília: IPEA, 2009. Texto com adaptações.
BAPTISTA, A.; LEE, R.; DIAS, S. Ando meio desligado. Intérprete:Os Mutantes. In: MUTANTES. A divina comédia ou Ando meio desligado. Rio de Janeiro: Polydor/Polyfar. p1970. 1 disco sonoro,Lado 1, faixa 1 (3 min 2s).
Adaptado de Peter Gay, O século de Schnitzler: a formação da cultura de classe média —
1815-1914. Trad. de S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 158-159.
( ) “um inconsciente dinâmico cujas ne cessidades se manifestam por meio dessas formas distorcidas, virtualmente ilegíveis” (1. 08- 10)
( ) “um animal cheio de desejos, que se adapta de maneira desajeitada ao confinamento das regras da civilização” (1. 13- 15)
( ) “o indivíduo pouco sabe sobre as reais motivações de suas ações e pensamentos” (1. 16-17) )
( ) “Esse destronamento da razão soberana ajuda a entender a resistência às ideias de Freud” (1. 18-19)
A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é
“Está se tornando frequente, escutarmos sobre gravações de conversas do advogado com seu cliente. Nos últimos meses, como é de conhecimento da grande maioria, tal a divulgação nos veículos de comunicação, ocorreram gravações de áudio e vídeo em parlatórios, ocorre, que estes são locais destinados a conversas reservadas entre advogados e clientes presos, um verdadeiro absurdo”.
(Disponível em:< http://www.luizfelipemagalhaes.com.br/artigo_ler.php?id=24> acesso em: 06 de maio de 2014)
Analise as informações a seguir a respeito do trecho lido:
I – O uso da vírgula no trecho “Está se tornando frequente,” constitui um desvio da seguinte regra gramatical: não se separam termos sintáticos diretamente ligados entre si, como sujeito e verbo e verbo e objeto, por exemplo.
II – O texto apresenta problemas em sua formulação sintática, como a expressão “ocorre, que”, típica da linguagem oral e inadequada a um comentário escrito. Em seu lugar, ficaria mais apropriado começar uma nova oração usando uma conjunção com valor semântico de oposição, como por exemplo: Contudo, estes são locais...
III – No trecho: “destinados a conversas”, a preposição “a” deveria receber acento grave indicativo de crase de acordo com as regras da norma padrão.
IV – A expressão “um verdadeiro absurdo” foi colocada em uma posição que prejudica a clareza e a coesão textuais. Para evitar a ambiguidade, o autor poderia introduzir uma nova oração, deixando clara sua opinião, como por exemplo: “Essa situação é um verdadeiro absurdo”.
V – O texto está bem redigido, visto que não apresenta problemas em sua formulação, o autor expressou-se de forma clara e objetiva, revelando sua indignação.
Estão corretas as afirmativas feitas em:
Hobbes nas ruas, Felipe Pondé
Dias atrás, o Brasil se chocou com cenas de violência nas ruas. Pessoas comuns batendo em supostos (ou comprovados) bandidos. Policiais tendo que protegê-los da fúria da gente comum.
De um lado, uma jornalista faz comentários arriscados na TV, do outro, setores da intelligentsia pedem
providências do Ministério Público contra a jornalista, botando ainda mais lenha na fogueira da atmosfera de ódio e ressentimento que toma conta, lentamente, da alta, média e baixa culturas nacionais.
Não se pode defender o espancamento na rua, mesmo sendo bandido. Só o Estado detém o monopólio legítimo da violência. Mas é esta mesma intelligentsia (tribunais, universidades, mídia, escolas, ONGs) que vem sistematicamente erodindo esse monopólio legítimo da violência que pertence à polícia. Claro que os erros desta precisam ser sanados, mas a sociedade não faz nada para melhorar o tratamento institucional dado à polícia, e sem ela, sim, a gente comum vai espancar supostos (ou comprovados) bandidos na rua. E vai piorar.
O espancamento de supostos (ou comprovados) bandidos na rua é parte do fenômeno de massa que os
inteligentinhos chamam de "jornadas de junho", num esforço de reviver a ejaculação precoce que foi o Maio de 68 na França, aquela revolução de mimados.
Lembremos que quando as manifestações do ano passado atingiram o nível de massa, os inteligentinhos começaram a gritar dizendo que o movimento (deles!) tinha sido sequestrado por setores "conservadores" da sociedade. Para eles, "conservador" é todo mundo que não os obedece e não os teme, mesmo que seja apenas para parar a Paulista.
Se no ano passado vimos uma inesperada crise na representação política, agora assistimos a um crescente rompimento do contrato social. E quem está na rua é o homem descrito pelo intelectual honesto que foi Hobbes, e não o pseudo-homem dos "delírios do caminhante solitário" e vaidoso Rousseau. (...)
(Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2014/02/1413114-hobbes-nas-
ruas.shtml Acesso em: 06 de maio de 2014)
Que qualidade primeira a gente deve esperar de alguém com quem pretende um relacionamento?
Perguntou-me o jovem jornalista, e lhe respondi: aquelas que se esperaria do melhor amigo. O resto, é
claro, seriam os ingredientes da paixão, que vão além da amizade. Mas a base estaria ali: na confiança, na
alegria de estar junto, no respeito, na admiração. Na tranqüilidade. Em não poder imaginar a vida sem
aquela pessoa. Em algo além de todos os nossos limites e desastres.
Talvez seja um bom critério. Não digo de escolha, pois amor é instinto e intuição, mais uma dessas opções
mais profundas, arcaicas, que a gente faz até sem saber, para ser feliz ou para se destruir. Eu não quereria
como parceiro de vida quem não pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces
emocionais: são um dos ganhos que a passagem do tempo me concedeu. Falo daquela pessoa para quem
posso telefonar, não importa onde ela esteja nem a hora do dia ou da madrugada, e dizer: "Estou mal,
preciso de você". E ele ou ela estará comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões a
pé, ou simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para que eu me recupere, me reencontre, me
reaprume, não me mate, seja lá o que for.
Mais reservada do que expansiva num primeiro momento, mais para tímida, tive sempre muitos conhecidos
e poucas, mas reais, amizades de verdade, dessas que formam, com a família, o chão sobre o qual a gente
sabe que pode caminhar. Sem elas, eu provavelmente nem estaria aqui. Falo daquelas amizades para as
quais eu sou apenas eu, uma pessoa com manias e brincadeiras, eventuais tristezas, erros e acertos, os
anos de chumbo e uma generosa parte de ganhos nesta vida. Para eles não sou escritora, muito menos
conhecida de público algum: sou gente.
A amizade é um meio-amor, sem algumas das vantagens dele, mas sem o ônus do ciúme - o que é, cá
entre nós, uma bela vantagem. Ser amigo é rir junto, é dar o ombro para chorar, é poder criticar (com
carinho, por favor), é poder apresentar namorado ou namorada, é poder aparecer de chinelo de dedo ou
roupão, é poder até brigar e voltar um minuto depois, sem ter de dar explicação nenhuma. Amiga é aquela a
quem se pode ligar quando a gente está com febre e não quer sair para pegar as crianças na chuva: a
amiga vai, e pega junto com as dela ou até mesmo se nem tem criança naquele colégio.
Amigo é aquele a quem a gente recorre quando se angustia demais, e ele chega confortando, chamando de
"minha gatona" mesmo que a gente esteja um trapo. Amigo, amiga, é um dom incrível, isso eu soube desde
cedo, e não viveria sem eles. Conheci uma senhora que se vangloriava de não precisar de amigos: "Tenho
meu marido e meus filhos, e isso me basta". O marido morreu, os fijhos seguiram sua vida, e ela ficou num
deserto sem oásis, injuriada como se o destino tivesse lhe pregado uma peça. Mais de uma vez se queixou,
e nunca tive coragem de lhe dizer, àquela altura, que a vida é uma construção, também a vida afetiva. E
que amigos não nascem do nada como frutos do acaso: são cultivados com... amizade. Sem esforço, sem
adubos especiais, sem método nem aflição: crescendo como crescem as árvores e as crianças quando não
lhes faltam nem luz nem espaço nem afeto.
Quando em certo período o destino havia aparentemente tirado de baixo de mim todos os tapetes e perdi o
prumo, o rumo, o sentido de tudo, foram amigos, amigas, e meus filhos, jovens adultos já revelados amigos,
que seguraram as pontas. E eram pontas ásperas aquelas. Aguentei, persisti, e continuei amando a vida, as
pessoas e a mim mesma (como meu amado amigo Erico Veríssimo, "eu me amo, mas não me admiro") o
suficiente para não ficar amarga. Pois, além de acreditar no mistério de tudo o que nos acontece, eu tinha
aqueles amigos. Com eles, sem grandes conversas nem palavras explícitas, aprendi solidariedade,
simplicidade, honestidade, e carinho.
Nesta página, hoje, sem razão especial nem data marcada, estou homenageando aqueles, aquelas, que
têm estado comigo seja como for, para o que der e vier, mesmo quando estou cansada, estou burra, estou
irritada ou desatinada, pois às vezes eu sou tudo isso, ah, sim! E o bom mesmo é que na amizade, se
verdadeira, a gente não precisa se sacrificar nem compreender nem perdoar nem fazer malabarismos
sexuais nem inventar desculpas nem esconder rugas ou tristezas. A gente pode simplesmente ser: que
alívio, neste mundo complicado e desanimador, deslumbrante e terrível, fantástico e cansativo. Pois o
verdadeiro amigo é confiável e estimulante, engraçado e grave, às vezes irritante; pode se afastar, mas
sabemos que retorna; ele nos aguenta e nos chama, nos dá impulso e abrigo, e nos faz ser melhores: como
o verdadeiro amor.
Lya Luft, Revista Veja, edição 1962, 28 de junho de 2006
I. “O marido morreu, os filhos seguiram sua vida, e ela ficou num deserto sem oásis”.
II. “Quando em certo período o destino havia aparentemente tirado de baixo de mim todos os tapetes e perdi o prumo, o rumo, o sentido de tudo...”.
III. “Perguntou-me o jovem jornalista, e lhe respondi: aquelas que se esperaria do melhor amigo”.
IV. “Falo daquela pessoa para quem posso telefonar, não importa onde ela esteja nem a hora do dia ou da madrugada...”.
A autora lançou mão do recurso da linguagem figurada nos trechos representados pelas proposições:
Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
E trago comigo todas as idades.
Nasci numa rebaixa de serra
Entre serras e morros.
“Longe de todos os lugares”.
Numa cidade de onde levaram
O ouro e deixaram as pedras.
CORALINA, Cora. Os melhores poemas. São Paulo: Global, 2004.
Bernardo Élis
Já tinha um horror de gente na beira do rio quando o delegado chegou. O corpo nu do menino estendia-se na areia. Frio. Empazinado.
O delegado sentenciou que estava morto. Embora todos já soubessem disso, o espanto foi geral. E houve um silêncio mau, sarcasticamente cheio de reflexões. Logo, porém, vieram comentários: “que o menino estava vadiando no rio cheio e deu um de-ponta. Que demorou a voltar à tona. Os outros meninos gritaram, berraram. Que o vendeiro veio correndo, mergulhou também. Chegaram mais pessoas. Depois meia hora o corpo passava na passagem e um velho o tirou. Que isso, que aquilo, que era sucuri que tinha ali.”
Agora o cadaverzinho estava estendido na praia. O delegado esbravejou contra essas mulheres que botam filhos no mundo e não lhes dão educação, não cuidam deles.
- Mas a mãe dele era a cozinheira da pensão e nem sabia de nada!
- Ah, é?!
Começaram a calçar no menino a calcinha suja e remendada.
Aqueles meninos da rua da Beira do Rio viviam dentro dágua o que dava o dia. O rio era a escola deles. Sua diversão, seu mundo enfim. As águas claras e mansas davam-lhes o carinho que o trabalho não deixava as mães lhes dar. Davam-lhes brinquedos que a falta de cobre negava. Para os meninos ricos, havia Papai Noel. Para os da rua da beira do Rio, enchente.
Eles ficavam imaginando uma cheia que cobrisse as casas da rua de Baixo. Então só os telhados ficariam de fora. Poderiam dar de-pontas da torre da igreja, ir nadando de casa em casa, fazer barquinhos e sair remando por entre os telhados. Naquela noite de fim de dezembro, o rio roncou feito um danado. De manhã, a luz morta do dia punha reflexos idiotas nos redemoinhos traiçoeiros das águas barrentas. No meio, a correnteza se encrespava em saltos selvagens, em saracoteios lúbricos, numa volúpia diabólica de destruição.
O menino enfincou um pauzinho na areia da praia, marcando a orla das águas. Com pouco, sumiu tudo.
- Capaz do rio passar pro riba da ponte.
Depois foram nadar na vargem. Mas o rio estava enfezado, trombudo, cheio de instintos criminosos e arrebatou o menino.
- Quem morreu, descansou. Vamos cuidar dos vivos - disse o delegado. E o povo riu, porque a presença incômoda da morte rondava friamente a criança arroxeada.
ÉLIS, Bernardo. Seleta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 19-20.
Para que o texto sobre a charge apresente as informações adequadas, as lacunas devem ser preenchidas, respectivamente, por:
[...] Como deixa claro o arco de idade e profissão dos envolvidos, a diversidade foi a marca do concurso. Reuniu num extremo a estudante Victoria Silva, de 12 anos, e no outro o engenheiro Victor Koi fman, de 78, recordista com 49 proposições. [...]
Segundo a Trend Watching.com, empresa de análise de tendências mundiais, com escritórios em Londres, Nova York, Sidney, Lagos e São Paulo, o engajamento cívico está entre as cinco principais orientações na agenda de 2014 das Américas do Sul e Central. O boletim divulgado no início do ano chama a atenção para a web como um eficiente veículo de reivindicações, algo que, aliás, já demonstraram as manifestações de rua do ano passado, germinadas nas redes sociais. Nesse contexto, a prefeitura busca criar um canal de diálogo com as pessoas. “O objetivo é transformar em melhorias palpáveis a energia que os indivíduos têm para protestar. O cidadão precisa ser parte da solução”, afirma Bruno Henrique, diretor da Coordenadoria Imagem Rio, da prefeitura. Sob sua alçada está um pacote de ações que prioriza a gestão participativa. Entre essas iniciativas estão chats com o prefeito e as chamadas hackathons, maratonas de programadores convidados a criar aplicativos para demandas urbanas.
No exterior não faltam exemplos de movimentos impulsionados pela internet que originaram bem-sucedidas metamorfoses urbanas. Foi graças à mobilização de dois moradores de Manhattan, Joshua David e Robert Hammond, que nasceu o High Line, parque construído sobre o elevado de uma desativada linha férrea de Nova York que virou atração concorrida. De quebra, revitalizou todo o entorno, com novos hotéis, lojas, galerias de arte e restaurantes. Semelhante ao Rio+, o movimento Improve San Francisco (ISF), nascido há dois anos em uma das cidades mais populosas da Califórnia, já envolveumais de 20 000 cidadãos.Além da confiança e do diálogo travado como poder local, a população obteve conquistas concretas através da discussão na web. “As pessoas estão sempre muito atarefadas. O segredo para atraí-las é propor desafios estimulantes, usando ferramentas digitais com grande poder de alcance”, diz Nick Bowden, CEO da MindMixer,mantenedora do ISF. É o caminho a seguir.
(Daniela Pessoa, in Revista Veja Rio, 30/04/2014)
Por: Chico Viana. Disponível em: http://hom.gerenciadordeconteudo.com.br/produtos/ESLP/textos/blog-ponta/a-precisao-dos- cliches-301498-1.asp Acesso em 17 de dezembro de 2013
Os manuais de redação dizem que escrever bem é evitar lugares comuns. Nada compromete mais o estilo do que o uso de expressões batidas, do feijão com arroz linguístico, que nada acrescenta à expressão. Mas não é fácil fugir ao clichê (acabei de usar um no período anterior: "feijão com arroz").
Por que é tão difícil escapar dessas fórmulas? Em parte, porque a língua tem um estoque limitado de imagens; não se pode a todo momento criar uma metáfora e, menos ainda, fazê-la atraente ao leitor. O público às vezes leva tempo para se afeiçoar tanto à semântica quanto à sonoridade de uma imagem nova.
Nelson Rodrigues dizia que seu maior achado era a repetição. Fiel a isso, recheava seus textos com expressões que os leitores já sabiam de cor. Tanto nas crônicas quanto nos romances, deparamo-nos a todo momento com referências à "ricaça das narinas de cadáver", ao Narciso às avessas, que cospe na própria imagem", ao sol de rachar catedrais". São imagens criadas pelo próprio Nelson, é certo, mas que perderam a novidade de tanto ser repetidas.
Nem por isto a sua prosa é menos sedutora. Pelo contrário, lemos o autor de "Vestido de noiva" com um prazer oposto ao que nos propicia, por exemplo, um Guimarães Rosa. Lemos para nos deparar com o mesmo, o conhecido, o quase-igual. Para gozar daquele "prazer de reencontro", de que nos fala Freud.
Uma boa explicação para o sucesso dos clichês encontro na página 199 de "O caçador de pipas", de Khaled Hosseini. Vale a pena transcrever a passagem:
"Um professor de redação que tive na San Jose State sempre dizia, referindo-se aos clichês: 'Tratem de evitá-lo como se evita uma praga.' E ria da própria piada. A turma toda ria junto com ele, mas sempre achei que aquilo era uma tremenda injustiça. Porque, muitas vezes, eles são de uma precisão impressionante. O problema é que a adequação das expressões-clichês é ofuscada pela natureza da expressão enquanto clichê."
Não deixa de ser irônico: ao orientar os alunos a rejeitar os clichês, o professor não escapa de produzir um deles ("como se evita uma praga"). Isso mostra que o clichê parece mesmo inevitável; funciona porque é preciso, exato. A precisão faz com que muitas vezes o escolhamos a despeito da sua natureza de lugar-comum. Servimo-nos dele não por preguiça mental, ou carência vocabular, mas por em dado momento não nos ocorrer nada mais expressivo.
Chico Viana é professor de português e redação.
www.chicoviana.com
- O Genoca tá com as carça furada no fiofó!
Os outros rapazes cercaram Eugênio numa algazarra. Houve pulos, atropelos, pontapés, cotoveladas, gritos e risadas: eram como galinhas correndo cegas a um tempo para bicar o mesmo punhado de milho. No meio da roda, atarantado e vermelho, Eugênio tapava com ambas as mãos o rasgão da calça, sentindo um calorão no rosto. Os colegas romperam em vaia frenética:
Calça furada!
Calça furada!
Calça furada-dá!
Gritavam em cadência uniforme, batendo palmas. Eugênio sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Balbuciava palavras de fraco protesto, que se sumiam devoradas pelo grande alarido.
Calça furada-dá!
No fio-fó-fó-fó!
Oia as calça dele, vovó!
Calça furada-dá!
Do outro lado do pátio, as meninas olhavam curiosas, com ar divertido, pulando e rindo. Em breve começaram a gritar também, integrando-se no coro, num alvoroço de gralhas.
O vento da manhã levava no seu sopro frio aquelas vozes agudas, espalhava-as pela cidade inteira, anunciando a toda a gente que o menino Eugênio estava com as calças rasgadas, bem naquele lugar... As lágrimas deslizavam pelo rosto do rapaz e ele deixava que elas corressem livres, lhe riscassem as faces, lhe entrassem pela boca, lhe pingassem do queixo, porque tinha ambas as mãos postas como um escudo sobre as nádegas. Agora, de braços dados, os rapazes formavam um grande círculo e giravam de um lado para outro, berrando sempre: Calça furada! Calça furada! Eugênio cerrou os olhos como para não ver por mais tempo a sua vergonha.
Soou a sineta.
Terminara o recreio. Na aula, Eugênio sentiu-se humilhado como um réu. Na hora da tabuada, a professora apontava os números no quadro-negro com o ponteiro, e os alunos gritavam em coro:
Dois e dois são quatro!
Três e três são seis!
E o ritmo desse coro lembrava a Eugênio a vaia do recreio. Calça furada-dá!
Que vergonha! O pai estava devendo o dinheiro do mês passado, a professora tinha reclamado o pagamento em voz alta, diante de todos os alunos. Ele era pobre, andava malvestido. Porque era quieto, os outros abusavam dele, botavam-lhe rabos de papel... Sábado passado ficara de castigo, de pé num canto, por estar de unhas sujas. O pior de tudo eram as meninas. Se ao menos na aula só houvesse rapazes... Meu Deus, como era triste, como era vergonhoso ser pobre!
(Erico Verissimo, Olhai os lírios do campo, Companhia das Letras, 2005. Adaptado)
Ainda bem. Pelo teor de alguns desses comentários, é bom mesmo que não se encontrem. Se um leitor discorda enfaticamente do que leu, pode atrair a resposta raivosa de um terceiro, o repique quase hidrófobo de um quarto e um bombardeio de opiniões homicidas na sequência. Lá pelo décimo comentário, o texto original já terá sido esquecido, e as pessoas estarão brigando on-line entre si.
O anonimato desses comentários estimula a que elas se sintam livres para passar da opinião aos insultos e até às ameaças. Na verdade, são um fórum de bravatas, já que seus autores sabem que nunca se verão frente a frente com os alvos de seus maus bofes.
Já com as “redes sociais” é diferente. Elas também podem ser um festival de indiscrições, fofocas, agressões, conspirações e, mais grave, denúncias sem fundamento. E, como acolhem e garantem a impunidade de todo tipo de violência verbal, induzem a que as pessoas levem esse comportamento para as ruas. Será por acaso a crescente incidência, nos últimos anos, de quebra-quebras em manifestações, brigas em estádios, arrastões em praias e, última contribuição das galeras, os “rolezinhos” nos shopping?
São algumas das atividades que as turbas combinam pelas “redes sociais” - expressão que, desde sempre, preferi escrever entre aspas, por enxergar nelas um componente intrinsecamente antissocials?
(Ruy Castro, Redes antissociais. Folha de S.Paulo, 15.01.2014. Adaptado)