TEXTO I
EU SEI, MAS NÃO DEVIA
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar
para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma
a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as
cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E,
à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar,
esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo
porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque
não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche
porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque
já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A
deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a
guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja
números para os mortos. E, aceitando os números, aceita
não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando
nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos
números, da longa duração. [...]
A gente se acostuma para não ralar na aspereza,
para preservar sempre a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta,
para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a
vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia.
2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. P. 9-10. Fragmento.)