Leia atentamente o texto a seguir para responder à questão.
Caso de Secretária
Foi trombudo para o escritório. Era dia de seu aniversário, e a esposa nem
sequer o abraçara, não fizera a mínima alusão à data. As crianças também tinham
se esquecido. Então era assim que a família o tratava? Ele que vivia para os seus,
que se arrebentava de trabalhar, não merecer um beijo, uma palavra ao menos!
Mas, no escritório, havia flores à sua espera, sobre a mesa. Havia o sorriso e
o abraço da secretária, que poderia muito bem ter ignorado o aniversário, e
entretanto se lembrava. Era mais do que uma auxiliar, atenta, experimentada e
eficiente, pé-de-boi da firma, como até então a considerara; era um coração amigo.
Passada a surpresa, sentiu-se ainda mais borocoxô: o carinho da secretária
não curava, abria mais a ferida. Pois então uma estranha se lembrava dele com tais
requintes, e a mulher e os filhos, nada? Baixou a cabeça, ficou rodando o lápis
entre os dedos, sem gosto para viver.
Durante o dia, a secretária redobrou de atenções. Parecia querer consolá-lo,
como se medisse toda a sua solidão moral, o seu abandono. Sorria, tinha palavras
amáveis, e o ditado da correspondência foi entremeado de suaves brincadeiras da
parte dela.
– O senhor vai comemorar em casa ou numa boate?
Engasgado, confessou-lhe que em parte nenhuma. Fazer anos é uma droga,
ninguém gostava dele neste mundo, iria rodar por aí à noite, solitário, como o lobo
da estepe.
– Se o senhor quisesse, poderíamos jantar juntos - insinuou ela,
discretamente.
E não é que podiam mesmo? Em vez de passar uma noite besta, ressentida -
o pessoal em casa pouco está ligando -, teria horas amenas, em companhia de uma mulher que - reparava agora - era bem bonita.
Daí por diante o trabalho foi nervoso, nunca mais que se fechava o escritório.
Teve vontade de mandar todos embora, para que todos comemorassem o seu
aniversário. Conteve-se no prazer ansioso da espera.
– Onde você prefere ir? - perguntou, ao saírem.
– Se não se importa, vamos passar primeiro no meu apartamento. Preciso
trocar de roupa.
Ótimo, pensou ele; faz-se a inspeção prévia do terreno e, quem sabe?
– Mas antes quero um drinque, para animar - ele retificou.
Foram ao drinque, ele recuperou não só a alegria de viver e de fazer anos,
como começou a fazê-los pelo avesso, remoçando. Saiu bem mais jovem do bar, e
pegou-lhe do braço.
No apartamento, ela apontou-lhe o banheiro e disse-lhe que o usasse sem
cerimônia. Dentro de quinze minutos ele poderia entrar no quarto, não precisava
bater – e o sorriso dela, dizendo isso, era uma promessa de felicidade.
Ele nem percebeu ao certo se estava se arrumando ou se desarrumando, de
tal modo que os quinze minutos se atropelaram, querendo virar quinze segundos,
no calor escaldante do banheiro e da situação. Liberto da roupa incômoda, abriu a
porta do quarto. Lá dentro, sua mulher e seus filhinhos, em coro com a secretária,
esperavam-no cantando “Parabéns para você”.
(Carlos Drummond de Andrade. Poesia e Prosa, Rio de Janeiro,
Nova Aguilar, 1988.)