TEXTO 1
[...]
Armado com um cartãozinho do bispo e um
bilhete particular de Conceição à senhora que administrava o serviço, Chico Bento conseguiu obter
o ambicionado lugar no açude do Tauape.
No bilhete, a moça fazia o possível para
comover a destinatária; e a senhora, apesar de já se ter
habituado a esses pedidos que falavam sempre numa
pobreza extrema e em criancinhas famintas, achou
jeito de desentulhar uma pá, e ela mesma guiou o
vaqueiro aturdido, com seu ferro na mão, e o entregou
ao feitor.
Duramente Chico Bento trabalhou todo o dia
no serviço da barragem.
Só de longe em longe parava para tomar fôlego,
sentindo o pobre peito cansado e os músculos vadios.
E o almoço, ao meio-dia, onde, junto ao pirão,
um naco de carne cheiroso emergia, mal o soergueu
e animou.
Já era tão antiga, tão bem instalada a sua fome,
para fugir assim, diante do primeiro prato de feijão,
da primeira lasca de carne!.
E até lhe amargou o gosto daquela carne,
lembrando-se de que Cordulina, a essa hora, engolia
talvez um triste resto de farinha, e junto dela,
devorada a magra ração, os meninos choravam...
Mas, à tarde, quando sentiu tinir no bolso o
jornal ganho, um novo sentimento o animou.
Tinha finalmente algum dinheiro – só dois
níqueis, é bem verdade! –, mas dinheiro ganho com
seu esforço, com os calangros dos seus braços, e que
o auxiliaria a alimentar a filharada esfomeada...
[...]
QUEIROZ, Raquel de. O quinze. 96ª ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2013 p. 106-107
TEXTO 2
Os Campos de Concentração funcionavam
como uma prisão. Os que lá chegavam não podiam
mais sair, ou melhor, só tinham permissão para se
deslocar quando eram convocados para o trabalho,
como a construção de estradas e açudes ou obras de
“melhoramento urbano” de Fortaleza, ou quando eram transferidos para outro campo. Durante esses
deslocamentos, sempre havia uma atenta vigilância
para evitar as fugas ou rebeliões. Os flagelados só se
deslocavam dentro de caminhões e, a todo momento,
ficavam sob o atento olhar de vigilantes.
Os flagelados eram vigiados durante o dia e a
noite. Na Concentração do Patu, por exemplo, “o
serviço de polícia era feito por duas turmas com 36
homens, divididos em cinco postos durante o dia e
seis no correr da noite” (O Povo, 25/05/1932).
Em muitos casos, os escolhidos superavam as
expectativas previstas nos postulados do
disciplinamento e acabavam se transformando em
problemas para os administradores. Empolgados
com o poder que passavam a exercer – o poder de
vigiar – muitos desses guardas começavam a causar
“desordens”, pois tornavam-se demasiadamente
agressivos e arbitrários no trato com os
concentrados. Nessas circunstâncias, esses
vigilantes entravam em dissonância com o projeto
idealizado para o funcionamento dos Campos, que
pretendia controlar o flagelado com base em um
discurso civilizado e civilizador. Quando alguns
casos de violência e desmando eram denunciados por
jornalistas, os vigilantes envolvidos perdiam o cargo
e voltavam à condição de meros concentrados.
Em algumas Concentrações existia um lugar
específico para o castigo e a punição exemplar. Nos
relatos jornalísticos que descreviam detalhadamente a
estrutura dos Campos de Concentração, jamais se
falou nessa prisão punitiva. Entretanto, nas
memórias dos sertanejos que passaram por estes
lugares, a lembrança do “sebo” tornou-se marcante.
Conforme o depoimento oral do Sr. José Camurça,
dentro do próprio Campo do Buriti (no Crato) havia
“uma espécie de cadeia para os desordeiros” e
“era um cercado de madeira bem alto e seguro”.
D. Maria de Jesus, que esteve por cinco meses na
Concentração de Senador Pompeu, comenta que os
rapazes deixavam que seus cabelos fossem raspados
temendo o confinamento no “sebo”.
A punição era, portanto, realizada de maneira
exemplar. A existência de um lugar para o castigo era
mais uma estratégia no disciplinamento dos
flagelados dentro das Concentrações. Mesmo que
não fossem utilizados com frequência, somente pelo
fato de existirem, esses lugares conseguiam fortalecer
o controle dos flagelados através de uma
intensificação da “pedagogia do medo”. Constituía-se
como uma espécie de autoridade inanimada.
RIOS, Kênia Sousa. Isolamento e poder: Fortaleza e os
campos de concentração na Seca de 1932. p. 93-95