O texto seguinte servirá de base para responder
à questão.
Os fora-fila
Todos os dias, milhões de brasileiros perdem horas
preciosas em filas de ônibus, e reclamam
corretamente dos oportunistas fura-fila. Poucos
percebem os fora-fila: os que usam carros privados
e os que não têm dinheiro nem vale-transporte. Há
séculos, muitos brasileiros fazem fila para obter o
que precisam, enquanto outros não têm direito nem
mesmo de esperar em fila, por falta absoluta de
dinheiro; enquanto outros não precisam se
submeter a filas porque têm muito dinheiro.
Por causa das ineficiências econômicas, a palavra
"fila" caracteriza o dia a dia dos brasileiros, mas por
causa da injustiça social não se percebe os que
estão fora das filas, de um lado e outro da escala
de rendas. Alguns porque não precisam se
submeter a elas, graças a privilégios e dinheiro,
outros porque não têm o direito de entrar nelas. No
meio, imprensados, os da fila, ignorando os
extremos. Nós nos acostumamos a ver com
naturalidade os que não precisam e ainda mais os
que não conseguem entrar nas filas, por tratá-los
como invisíveis.
No setor da saúde, nos indignamos com os que
tentam furar a fila para tomar vacina, mas não
percebemos a injustiça quando furam a fila ao usar
dinheiro para o atendimento médico de um pediatra
para o filho, de um dentista e de profissionais de
todas as outras especialidades que não estão
disponíveis no SUS, com a urgência necessária.
Apesar do nome, o sistema nacional de saúde não
é único: de um lado, tem o SUS com suas filas; e,
do outro, o SEP - Sistema Exclusivo de Saúde -
sem fila para os que podem pagar.
Todos condenamos os fura-fila do SUS para tomar
vacina, mas todos aceitamos que se fure a fila nas
demais especialidades médicas, inclusive cirurgias,
por meio do uso do dinheiro. Em alguns casos, há
reclamação quando a fila se organiza por um
pequeno papel numerado, mas não se protesta
quando, perto dali, o atendimento é imediato,
porque no lugar do papel com o número da fila
usa-se papel moeda. Aceita-se furar fila graças ao
dinheiro. Nem se considera como fura fila. São os
fora-fila, aceitos por convenção de que o dinheiro
pode comprar saúde.
Na moradia, alguns entram na fila do programa
Minha Casa Minha Vida; outros não precisam, compram diretamente a casa que desejam e
podem; outros também não entram na fila, porque
não têm as mínimas condições de financiamento.
O mesmo vale para a educação. Em função do
Coronavírus, o Brasil descobriu que algumas boas
escolas, em geral pagas e caras, com ensino
remoto, computadores e internet em casa,
permitem que alguns cheguem ao ENEM com mais
possibilidade de aprovação do que outros. Apesar
de que a aprovação é conquistada pelo mérito do
concorrente, os aprovados se beneficiaram da
exclusão de muitos concorrentes ao longo da
educação de base.
A desigualdade na qualidade da escola desiguala o
preparo entre os candidatos, como uma forma de
empurrar alguns para fora e outros para a frente da
fila. De certa forma, alguns furaram a fila para
ingresso na universidade, por pagarem uma boa
escola ainda na educação de base. E não há
reclamação porque os fora da fila são invisíveis,
porque não concluíram o Ensino Médio, ou
concluíram um Ensino Médio sem qualidade que
não lhes deu condição sequer de sonhar fazer o
ENEM.
Tanto quanto os que não podem pagar o transporte
público não entram na fila do ônibus, os analfabetos
(12 milhões de brasileiros) não entram na fila do
ENEM para ingresso na universidade. Foram
excluídos da formação, por falta de oportunidade
para desenvolver o talento no momento oportuno
da educação de base, e, por isso, ficam impedidos
de disputar, por mérito, uma vaga na universidade.
Ninguém fura fila para chegar à seleção brasileira
de futebol, porque todos tiveram a mesma chance.
A seleção é pelo mérito, graças ao fato de que a
bola é redonda para todos, independentemente da
renda.
Temos a preocupação de assegurar os mesmos
direitos para obter vacina, não o mesmo direito para
a qualidade e a urgência no atendimento de saúde
e de educação, independentemente da renda e do
endereço da pessoa. Nem ao menos consideramos
que há injustiça em furar fila usando dinheiro para
ter acesso à educação e à saúde de qualidade. É
como se fosse normal furar fila por se ter muito
dinheiro e normal ficar fora da fila por falta total de
dinheiro. No meio, ficam os que, por pouco dinheiro,
ficam na fila e se indignam com os que tentam
desrespeitar a ordem, sem atentar para os fora da
fila nos carros, ou os fora da fila caminhando. Os
primeiros aceitamos pelas leis do mercado, os
outros tornamos invisíveis.