À moda brasileira
1 Estou me vendo debaixo de uma árvore, lendo a
pequena história da literatura brasileira.
2 Olavo Bilac! – eu disse em voz alta e de repente parei quase num susto depois que li os primeiros
versos do soneto à língua portuguesa: Última flor do
Lácio, inculta e bela / És, a um tempo, esplendor e
sepultura.
3 Fiquei pensando, mas o poeta disse sepultura?!
O tal de Lácio eu não sabia onde ficava, mas de sepultura eu entendia bem, disso eu entendia, repensei baixando o olhar para a terra. Se escrevia (e já
escrevia) pequenos contos nessa língua, quer dizer
que era a sepultura que esperava por esses meus
escritos?
4 Fui falar com meu pai. Comecei por aquelas
minhas sondagens antes de chegar até onde queria, os tais rodeios que ele ia ouvindo com paciência
enquanto enrolava o cigarro de palha, fumava nessa
época esses cigarros. Comecei por perguntar se minha mãe e ele não tinham viajado para o exterior.
5 Meu pai fixou em mim o olhar verde. Viagens,
só pelo Brasil, meus avós é que tinham feito aquelas longas viagens de navio, Portugal, França, Itália...
Não esquecer que a minha avó, Pedrina Perucchi,
era italiana, ele acrescentou. Mas por que essa curiosidade?
6 Sentei-me ao lado dele, respirei fundo e comecei
a gaguejar, é que seria tão bom se ambos tivessem
nascido lá longe e assim eu estaria hoje escrevendo
em italiano, italiano! – fiquei repetindo e abri o livro
que trazia na mão: Olha aí, pai, o poeta escreveu
com todas as letras, nossa língua é sepultura mesmo, tudo o que a gente fizer vai para debaixo da terra,
desaparece!
7 Calmamente ele pousou o cigarro no cinzeiro ao
lado. Pegou os óculos. O soneto é muito bonito, disse
me encarando com severidade. Feio é isso, filha, isso
de querer renegar a própria língua. Se você chegar a
escrever bem, não precisa ser em italiano ou espanhol ou alemão, você ficará na nossa língua mesmo,
está me compreendendo? E as traduções? Renegar
a língua é renegar o país, guarde isso nessa cabecinha. E depois (ele voltou a abrir o livro), olha que
beleza o que o poeta escreveu em seguida, Amo-te
assim, desconhecida e obscura, veja que confissão
de amor ele fez à nossa língua! Tem mais, ele precisava da rima para sepultura e calhou tão bem essa
obscura, entendeu agora? – acrescentou e levantou-se. Deu alguns passos e ficou olhando a borboleta
que entrou na varanda: Já fez a sua lição de casa?
8 Fechei o livro e recuei. Sempre que meu pai queria mudar de assunto ele mudava de lugar: saía da
poltrona e ia para a cadeira de vime. Saía da cadeira
de vime e ia para a rede ou simplesmente começava
a andar. Era o sinal, Não quero falar nisso, chega.
Então a gente falava noutra coisa ou ficava quieta.
9 Tantos anos depois, quando me avisaram lá do
pequeno hotel em Jacareí que ele tinha morrido, fiquei pensando nisso, ah! se quando a morte entrou,
se nesse instante ele tivesse mudado de lugar. Mudar
depressa de lugar e de assunto. Depressa, pai, saia
da cama e fique na cadeira ou vá pra rua e feche a
porta!
TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá:
perdidos e achados. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.109-111.
Fragmento adaptado.