Em O processo, a antevisão do inferno em que se
transformaria a burocracia moderna, das culpas imputadas, da
tortura anônima e da morte que caracterizam os regimes
totalitários do século vinte já é um lugar-comum. O trucidamento
(literal) de que K. tornou-se um ícone do homicídio político. “A
colônia penal” de Kafka transformou-se em realidade pouco
depois de sua morte, quando também os temas da aniquilação e
dos “vermes”, de sua Metamorfose, adquiriram macabra
realidade. A realização concreta de suas premonições, com
pormenores de clarividência, está indissociavelmente relacionada
às suas fantasias aparentemente desvairadas. Haveria algum
sentido em pensar que, de alguma forma, as previsões claramente
formuladas na ficção de Kafka, em O processo principalmente,
teriam contribuído para que de fato ocorressem? Seria possível
que uma profecia articulada de maneira tão impiedosa tivesse
outro destino que não a sua realização? As três irmãs de K. e sua
Milena morreram em campos de concentração. O judeu da
Europa Central que Kafka ironizou e celebrou foi extinto de
maneira abominável. Em termos espirituais, existe a
possibilidade de Franz Kafka ter sentido seus dons proféticos
como uma visitação de culpa, de que a capacidade de antever o
tivesse exposto demais às suas emoções. K. torna-se o cúmplice,
perplexo, porém quase impaciente, do crime perpetrado contra
ele. Coexistem, em todos os suicídios, a apologia e a
aquiescência. Como diz o sacerdote, em triste zombaria (seria
mesmo zombaria?): “A justiça nada quer de ti. Acolhe-te quando
vens e te deixa ir quando partes”. Essa formulação está muito
próxima de ser uma definição da vida humana, da liberdade de
ser culpado, que é a liberdade concedida ao homem expulso do
Paraíso. Quem, senão Kafka, teria sido capaz de dizer isso em tão
poucas palavras? Ou se saber condenado por ter sido capaz de
fazê-lo?
George Steiner. Um comentário sobre O processo de Kafka. In: Nenhuma paixão desperdiçada.
Tradução de Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Record, 2001 (com adaptações).