Questões de Concurso Público Câmara de Juiz de Fora - MG 2018 para Jornalista
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As instituições sociedades se configuram em padrões econômicos, culturais e ético-políticos. Esses padrões são correlatos de uma ordem historicamente construída. A ordem social pode ser chamada de “autogerada” somente no sentido em que ela resulta da atividade dos seres humanos, que são seres sociais, não sendo, portanto, definida por um ser supremo fora de nosso mundo, nem muito menos resultante meramente de nossas tendências biológicas, tais como se verificaria numa colmeia ou num formigueiro. A ordem social é autogerada coletivamente a partir da produção e reprodução coletiva da existência humana. Essa empreita, transformando-se constantemente de acordo com as reconfigurações da correlação de forças econômicas e ético-políticas, possui uma dimensão histórica radical, pois tudo está em um processo, em um “devir” contínuo. A história não dá saltos, nada acontece sem ter sido preparado, sem que condições específicas não tivessem possibilitado o advento do novo. A ordem social é construída historicamente e só é criticamente compreensível segundo a configuração das forças sociais em dado momento, o que pode ser investigado a partir da pergunta sobre a quem ela serve. Essas forças expressam o entrelaçamento das relações de poder econômico, político, técnico-científico, comunicativo e bélico.
Devido ao caráter instável da configuração e constituição social, nenhuma ordem, padrão de reconhecimento entre as pessoas, em relação ao qual se estabelece o que cabe a cada uma fazer, ceder, oferecer e receber, deve ser entendida fora do processo contraditório de destruição e criação de padrões, da desordem que lhe é correlata, das ações que não se enquadram nos padrões de reconhecimento estabelecidos num determinado momento, mas que os tornam relativos.
O poder público tem-se definido como esquema de constrangimento, capacidade de definir prioridades para a coletividade, controle dos meios de produção e reprodução da existência social e dos meios de persuasão e de repressão. A sociedade é desigual porque a partilha do poder econômico gera diferenças históricas definidas pela divisão social do trabalho e da propriedade. Assim, a desigualdade de poder de consumo é apenas a ponta do iceberg da configuração das forças sociais, do processo histórico segundo o qual uma sociedade se constitui. A ordem expressa nas leis constitucionais que modulam juridicamente uma sociedade reflete e justifica a configuração de forças históricas, que define como os frutos da cooperação social são diferentemente apropriados.
SILVA, S. R. Ética pública e formação humana. Educ. Soc.,
Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 645-665, out. 2006. p.
648-649. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br (com
adaptações).
As instituições sociedades se configuram em padrões econômicos, culturais e ético-políticos. Esses padrões são correlatos de uma ordem historicamente construída. A ordem social pode ser chamada de “autogerada” somente no sentido em que ela resulta da atividade dos seres humanos, que são seres sociais, não sendo, portanto, definida por um ser supremo fora de nosso mundo, nem muito menos resultante meramente de nossas tendências biológicas, tais como se verificaria numa colmeia ou num formigueiro. A ordem social é autogerada coletivamente a partir da produção e reprodução coletiva da existência humana. Essa empreita, transformando-se constantemente de acordo com as reconfigurações da correlação de forças econômicas e ético-políticas, possui uma dimensão histórica radical, pois tudo está em um processo, em um “devir” contínuo. A história não dá saltos, nada acontece sem ter sido preparado, sem que condições específicas não tivessem possibilitado o advento do novo. A ordem social é construída historicamente e só é criticamente compreensível segundo a configuração das forças sociais em dado momento, o que pode ser investigado a partir da pergunta sobre a quem ela serve. Essas forças expressam o entrelaçamento das relações de poder econômico, político, técnico-científico, comunicativo e bélico.
Devido ao caráter instável da configuração e constituição social, nenhuma ordem, padrão de reconhecimento entre as pessoas, em relação ao qual se estabelece o que cabe a cada uma fazer, ceder, oferecer e receber, deve ser entendida fora do processo contraditório de destruição e criação de padrões, da desordem que lhe é correlata, das ações que não se enquadram nos padrões de reconhecimento estabelecidos num determinado momento, mas que os tornam relativos.
O poder público tem-se definido como esquema de constrangimento, capacidade de definir prioridades para a coletividade, controle dos meios de produção e reprodução da existência social e dos meios de persuasão e de repressão. A sociedade é desigual porque a partilha do poder econômico gera diferenças históricas definidas pela divisão social do trabalho e da propriedade. Assim, a desigualdade de poder de consumo é apenas a ponta do iceberg da configuração das forças sociais, do processo histórico segundo o qual uma sociedade se constitui. A ordem expressa nas leis constitucionais que modulam juridicamente uma sociedade reflete e justifica a configuração de forças históricas, que define como os frutos da cooperação social são diferentemente apropriados.
SILVA, S. R. Ética pública e formação humana. Educ. Soc.,
Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 645-665, out. 2006. p.
648-649. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br (com
adaptações).
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório.
Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama- “lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher (…).
(LOBATO, Monteiro. O Colocador de Pronomes. In: PINTO, Edith Pimentel (org.). O Português do Brasil: textos críticos e teóricos II - 1920-1945 – Fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, [1924] 1981, p. 51-79.)
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório.
Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama- “lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher (…).
(LOBATO, Monteiro. O Colocador de Pronomes. In: PINTO, Edith Pimentel (org.). O Português do Brasil: textos críticos e teóricos II - 1920-1945 – Fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, [1924] 1981, p. 51-79.)
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório.
Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama- “lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher (…).
(LOBATO, Monteiro. O Colocador de Pronomes. In: PINTO, Edith Pimentel (org.). O Português do Brasil: textos críticos e teóricos II - 1920-1945 – Fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, [1924] 1981, p. 51-79.)
Leia o texto e responda à questão.
As instituições sociedades se configuram em padrões econômicos, culturais e ético-políticos. Esses padrões são correlatos de uma ordem historicamente construída. A ordem social pode ser chamada de “autogerada” somente no sentido em que ela resulta da atividade dos seres humanos, que são seres sociais, não sendo, portanto, definida por um ser supremo fora de nosso mundo, nem muito menos resultante meramente de nossas tendências biológicas, tais como se verificaria numa colmeia ou num formigueiro. A ordem social é autogerada coletivamente a partir da produção e reprodução coletiva da existência humana. Essa empreita, transformando-se constantemente de acordo com as reconfigurações da correlação de forças econômicas e ético-políticas, possui uma dimensão histórica radical, pois tudo está em um processo, em um “devir” contínuo. A história não dá saltos, nada acontece sem ter sido preparado, sem que condições específicas não tivessem possibilitado o advento do novo. A ordem social é construída historicamente e só é criticamente compreensível segundo a configuração das forças sociais em dado momento, o que pode ser investigado a partir da pergunta sobre a quem ela serve. Essas forças expressam o entrelaçamento das relações de poder econômico, político, técnico-científico, comunicativo e bélico.
Devido ao caráter instável da configuração e constituição social, nenhuma ordem, padrão de reconhecimento entre as pessoas, em relação ao qual se estabelece o que cabe a cada uma fazer, ceder, oferecer e receber, deve ser entendida fora do processo contraditório de destruição e criação de padrões, da desordem que lhe é correlata, das ações que não se enquadram nos padrões de reconhecimento estabelecidos num determinado momento, mas que os tornam relativos.
O poder público tem-se definido como esquema de constrangimento, capacidade de definir prioridades para a coletividade, controle dos meios de produção e reprodução da existência social e dos meios de persuasão e de repressão. A sociedade é desigual porque a partilha do poder econômico gera diferenças históricas definidas pela divisão social do trabalho e da propriedade. Assim, a desigualdade de poder de consumo é apenas a ponta do iceberg da configuração das forças sociais, do processo histórico segundo o qual uma sociedade se constitui. A ordem expressa nas leis constitucionais que modulam juridicamente uma sociedade reflete e justifica a configuração de forças históricas, que define como os frutos da cooperação social são diferentemente apropriados.
SILVA, S. R. Ética pública e formação humana. Educ. Soc.,
Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 645-665, out. 2006. p.
648-649. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br (com
adaptações).
Leia o texto e responda à questão.
As instituições sociedades se configuram em padrões econômicos, culturais e ético-políticos. Esses padrões são correlatos de uma ordem historicamente construída. A ordem social pode ser chamada de “autogerada” somente no sentido em que ela resulta da atividade dos seres humanos, que são seres sociais, não sendo, portanto, definida por um ser supremo fora de nosso mundo, nem muito menos resultante meramente de nossas tendências biológicas, tais como se verificaria numa colmeia ou num formigueiro. A ordem social é autogerada coletivamente a partir da produção e reprodução coletiva da existência humana. Essa empreita, transformando-se constantemente de acordo com as reconfigurações da correlação de forças econômicas e ético-políticas, possui uma dimensão histórica radical, pois tudo está em um processo, em um “devir” contínuo. A história não dá saltos, nada acontece sem ter sido preparado, sem que condições específicas não tivessem possibilitado o advento do novo. A ordem social é construída historicamente e só é criticamente compreensível segundo a configuração das forças sociais em dado momento, o que pode ser investigado a partir da pergunta sobre a quem ela serve. Essas forças expressam o entrelaçamento das relações de poder econômico, político, técnico-científico, comunicativo e bélico.
Devido ao caráter instável da configuração e constituição social, nenhuma ordem, padrão de reconhecimento entre as pessoas, em relação ao qual se estabelece o que cabe a cada uma fazer, ceder, oferecer e receber, deve ser entendida fora do processo contraditório de destruição e criação de padrões, da desordem que lhe é correlata, das ações que não se enquadram nos padrões de reconhecimento estabelecidos num determinado momento, mas que os tornam relativos.
O poder público tem-se definido como esquema de constrangimento, capacidade de definir prioridades para a coletividade, controle dos meios de produção e reprodução da existência social e dos meios de persuasão e de repressão. A sociedade é desigual porque a partilha do poder econômico gera diferenças históricas definidas pela divisão social do trabalho e da propriedade. Assim, a desigualdade de poder de consumo é apenas a ponta do iceberg da configuração das forças sociais, do processo histórico segundo o qual uma sociedade se constitui. A ordem expressa nas leis constitucionais que modulam juridicamente uma sociedade reflete e justifica a configuração de forças históricas, que define como os frutos da cooperação social são diferentemente apropriados.
SILVA, S. R. Ética pública e formação humana. Educ. Soc.,
Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 645-665, out. 2006. p.
648-649. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br (com
adaptações).
Leia o texto e responda à questão.
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama- “lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher (…).
(LOBATO, Monteiro. O Colocador de Pronomes. In: PINTO, Edith Pimentel (org.). O Português do Brasil: textos críticos e teóricos II - 1920-1945 – Fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, [1924] 1981, p. 51-79.)
Leia o texto e responda à questão.
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama- “lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher (…).
(LOBATO, Monteiro. O Colocador de Pronomes. In: PINTO, Edith Pimentel (org.). O Português do Brasil: textos críticos e teóricos II - 1920-1945 – Fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, [1924] 1981, p. 51-79.)
Leia o texto e responda à questão.
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama- “lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher (…).
(LOBATO, Monteiro. O Colocador de Pronomes. In: PINTO, Edith Pimentel (org.). O Português do Brasil: textos críticos e teóricos II - 1920-1945 – Fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, [1924] 1981, p. 51-79.)
Leia o texto e responda à questão.
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama- “lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher (…).
(LOBATO, Monteiro. O Colocador de Pronomes. In: PINTO, Edith Pimentel (org.). O Português do Brasil: textos críticos e teóricos II - 1920-1945 – Fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, [1924] 1981, p. 51-79.)
Leia o texto e responda à questão.
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama- “lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher (…).
(LOBATO, Monteiro. O Colocador de Pronomes. In: PINTO, Edith Pimentel (org.). O Português do Brasil: textos críticos e teóricos II - 1920-1945 – Fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, [1924] 1981, p. 51-79.)
Leia o texto e responda à questão.
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama- “lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher (…).
(LOBATO, Monteiro. O Colocador de Pronomes. In: PINTO, Edith Pimentel (org.). O Português do Brasil: textos críticos e teóricos II - 1920-1945 – Fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, [1924] 1981, p. 51-79.)
I. A expressão “senão” equivale, no enunciado, a “a não ser”. II. A expressão “senão” equivale, no enunciado, a “do contrário”. III. A expressão “senão” equivale, no enunciado, a “apenas”.
Leia o texto e responda à questão.
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama- “lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher (…).
(LOBATO, Monteiro. O Colocador de Pronomes. In: PINTO, Edith Pimentel (org.). O Português do Brasil: textos críticos e teóricos II - 1920-1945 – Fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, [1924] 1981, p. 51-79.)