Ordem, progresso e desenrascanço
Gregório Duvivier*
Os portugueses, levaram pro Brasil, por exemplo,
pelo menos 100 mil palavras. Tenho pena que tenham esquecido em casa algumas das minhas preferidas. Talvez não tenha sido esquecimento, mas ciúmes: gostavam tanto delas que não queriam vê-las
em nossas bocas. Há, definitivamente, todo um rol de
palavras que nunca atravessaram o Atlântico.
Gosto em especial da palavra ronha – e de praticá-la.
A palavra parece outra coisa, e de fato já foi: uma espécie de sarna, e, também, uma doença de plantas.
Ninguém mais usa nesse sentido. A expressão "ficar
na ronha" se refere à prática de abrir os olhos, mas
permanecer na cama. Não imaginam minha excitação ao descobrir que existe uma palavra pro meu esporte preferido.
A arte da ronha consiste em acordar sem, no entanto,
se levantar. Trata-se do primeiro trambique do dia: a
procrastinada inaugural de todas as manhãs. "Dormi
pouco", dizem, "mas fiquei duas horas na ronha" – e
pode parecer que ronha equivale à função soneca.
Não, durante a soneca voltamos a dormir. E na ronha
permanecemos naquele meio termo que Proust demorou dez páginas pra descrever, mas aos portugueses bastaram cinco letras.
Tenho muita pena de não usarmos a palavra javardo.
Trata-se de um sinônimo pra javali, mas que nunca
será usado pra designar o animal propriamente dito.
Chamam de javardo alguém que se comporta como
um javali, ou melhor, que se comporta como imaginamos que um javali se comportaria: de forma grosseira, estúpida, abjeta. Gosto porque a palavra soa
precisamente o que ela significa.
Da mesma forma, não há xingamentos bons como
"aldrabão", termo que designa com especial precisão
um farsante muito específico, algo entre o trapaceiro
e o impostor, que comete aldrabices, pequenas fraudes – não confundir com batotas, outra palavra que
não viajou, que se refere às trapaças vultosas quando
cometidas dentro de um jogo, por exemplo, embora
algumas sem grande importância.
De todas as palavras esquecidas, tenho uma predileta, aquela que designa a solução que resolve um problema de maneira temporária, mas não em definitivo: desenrascanço. Trata-se de uma gambiarra, mas
não necessariamente mecânica – pode ser qualquer
coisa que nos safe, como um papelão que faz às vezes
de guarda-chuva. Gambiarra é um achado importante e gambiarra se aceita nesse contexto.
Nunca ouvi essa palavra em nossas bandas, e ao mesmo tempo nunca uma palavra definiu tão bem a atividade diária do brasileiro, esse desenrascado. Queria
essa palavra em nossa bandeira: ordem, progresso e
desenrascanço.
* É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta
dos Fundos.
Folha de São Paulo, Ilustrada, 01 dez. 2021. Adaptado