Quantos amigos seus estão na cracolândia?
Antônio Prata
Carl Hart é psicólogo, psiquiatra e foi o primeiro negro a alcançar o posto
de professor titular de neurociências na Universidade de Columbia, em Nova York.
Em 2015, Hart veio ao Brasil divulgar seus estudos sobre drogas e vício. Numa
entrevista ao Drauzio Varella, falou sobre sua pesquisa com ratos e macacos, em
laboratório. Quando se coloca um animal sozinho numa jaula, capaz de acionar
uma alavanca e receber uma dose de cocaína ou meta-anfetamina na veia, o bicho
acionará a alavanca até morrer. Quando, porém, há mais estímulos na jaula, além
da alavanca, como um outro animal sexualmente ativo, uma rodinha (no caso dos
ratos) ou doces, as cobaias sobrevivem.
Extrapolando seus insights para humanos, o que Hart prega é que não
adianta combater o vício sem apresentar alternativas à droga. A cracolândia, ele
insistiu em entrevistas e palestras, por aqui, não pode ser pensada pela perspectiva do vício sem ser pensada antes pela perspectiva da miséria.
Imagine que você é um mendigo viciado em crack. Seus pertences são
uma calça esfarrapada, uma camiseta imunda, um par de Havaianas, um isqueiro.
Você se lembra vagamente de ter tido metade de um pente, num passado não
muito distante, mas não sabe onde foi parar. Sua existência se resume a pedir
dinheiro no farol e a fumar crack. Nos minutos que duram a viagem, você se esquece de tudo. O resto do tempo é o inferno.
Um belo dia você decide parar com o crack. Você luta, faz um esforço
sobre-humano e depois de meses está curado. Você deita sob uma marquise na
rua Helvétia, apoia a cabeça num paralelepípedo, dá um gole numa poça d'água
e pensa: agora eu sou um mendigo saudável! Pensa no futuro. Posso arrumar um
trapo para limpar os vidros dos carros, no farol. Quem sabe, vender Suflair? Se me
esforçar bastante, consigo um carrinho e um cachorro, virarei catador. Talvez você
seja uma pessoa mais solar do que eu, mas devo admitir que, se estivesse naquela
situação, escolheria o crack. Ficaria na minha jaula acionando a alavanca até morrer.
É verdade que muitas das pessoas que estão na cracolândia chegaram à
mendicância por causa da droga, mas não vieram de muito longe. A maioria, segundo censo da prefeitura, não completou o ensino fundamental. São pobres, negros e pardos. Quando aparece alguém de fora desse estrato é um espanto, como
foi a suspeita de que o irmão da Suzane Richthofen era viciado. Claro que parte
da comoção com a notícia tem a ver com a tragédia daquele garoto. Mas uma
parte do susto é: meu Deus, um loiro na cracolândia! Um descendente de alemães!
Que estudou em escola particular!
Quantas pessoas do seu círculo consomem álcool regularmente? E maconha? Aposto que você conhece pessoas profissionalmente ativas e bem-sucedidas que consomem cocaína. E crack? Quantos viciados em crack há na sua família, na sua turma de escola, dormindo no chão, na praça Princesa Isabel? Princesa
Isabel, veja só.
Em 2015, Carl Hart, negro, com dreads, foi barrado na entrada de um hotel, em São Paulo. Questionado a respeito, disse não entender por que as pessoas
estavam tão chocadas por ele ter sido barrado no hotel, mas não se chocavam
com o fato de não haver um só negro no público de suas palestras.
Infelizmente, entre nós, o choque mais comum diante da desigualdade é a
tropa.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2017/06/1890076-quantos-amigosseus-estao-na-cracolandia.shtml Acesso em: 30 set. 2017.