Acreditar em bobagens
Por Natalia Pasternak e Carlos Orsi
Uma definição comum de “agente racional” é alguém que tem objetivos, crenças sobre como melhor
alcançá-los e que age de acordo. Note-se que a definição omite a natureza das crenças em si. Se alguém
acredita que o horóscopo do jornal é uma fonte confiável de orientações sobre o dia a dia, estará sendo
perfeitamente racional ao obedecer às exortações do astrólogo.
A constatação de que as crenças que carregamos na vida podem fazer com que qualquer tolice pareça
claramente razoável não é nova. Atribuída a Voltaire, a frase “quem o leva a acreditar em absurdos pode levá-lo a cometer atrocidades” ganha especial relevância nesta era de redes sociais e aplicativos de mensagens,
quase 250 anos depois da morte do filósofo francês. Cem anos após Voltaire, outro filósofo, o inglês William
Clifford, formulava o princípio de que toda pessoa tem o dever moral de fazer uma cuidadosa curadoria das
coisas em que acredita, eliminando tudo o que seja mal embasado — exatamente para que a racionalidade
não redunde em atrocidades.
Trata-se, porém, de dever muito mais fácil de enunciar que de cumprir. Adquirimos ou sustentamos
crenças o tempo todo, pelos mais variados motivos — porque é confortável acreditar em certas coisas, porque
aceitar ou negar fatos nos oferece uma desculpa para fazer o que temos vontade de fazer, porque nossos
pais, amigos, amantes, sacerdotes, sócios, colegas e vizinhos esperam, cada um a seu modo, conformidade
de nós. Outras nos são empurradas pelo marketing e pela publicidade incessantes.
Num ambiente tão carregado, como fazer uma curadoria adequada? Quem tem o tempo, ou os meios,
para isso?
Existem, é claro, diversos tipos de crença, com diferentes potenciais de dano. Acreditar que existem
unicórnios azuis na Galáxia de Andrômeda provavelmente não fará mal a ninguém. As mais perigosas,
quando falsas ou mal embasadas, são as que dizem respeito à realidade sensível, concreta, imediata — as
que podem levar pessoas racionais e bem-intencionadas a gastar as economias de uma vida ou pôr a saúde
— própria ou de entes queridos — em risco.
Por sorte, esse é o tipo de crença para o qual a humanidade desenvolveu um filtro fantástico: a ciência.
Todas as ciências, com seus diferentes métodos, buscam descrever e explicar a realidade sensível e concreta
— seja a composição de uma rocha, a causa de uma doença, a origem de um povo — com base nas
evidências de melhor qualidade, num sistema em que nenhum especialista está acima da crítica dos colegas,
e toda conclusão sempre pode ser revisada mais tarde, à medida que o conjunto de evidências disponíveis
cresce, e as interpretações amadurecem.
Existem, no entanto, sistemas que, rejeitados pelo filtro científico, dedicam-se a fazer exatamente o
contrário do que as ciências propõem — idolatrando a palavra infalível de “gênios” fundadores, inventando
malabarismos para descartar boas evidências, resistindo a revisões significativas — e sobrevivem na cultura
como fonte de crenças pretensamente válidas a respeito da realidade concreta. São chamados de
pseudociências.
Analisamos 12 delas em nosso livro “Que bobagem!”, lançado neste mês pela Editora Contexto. A análise
detalhada é necessária para que o carimbo de “pseudociência” seja uma conclusão lógica, não mero
pejorativo, e para que o leitor compreenda o aspecto histórico e cultural desses sistemas e como exatamente
eles alegam curar, resolver, explicar. Alguns, como astrologia, tendem a ser vistos como passatempos
inócuos; outros, como a psicanálise ou a homeopatia, ainda se encontram entrincheirados na academia. Mas
todos infectam a racionalidade e, em determinados contextos, têm potencial de concretizar o temor de
Voltaire, promovendo absurdos e causando atrocidades.
Disponível em: <https://oglobo.globo.com> Acesso em: 9 de jul. de 2023