HISTÓRIA DE BEM-TE-VIS
(1º§) O ano passado, aqui nas mangueiras dos
meus simpáticos vizinhos, apareceu um bem-te-vi caprichoso, muito moderno, que se recusava
a articular as três sílabas tradicionais do seu
nome. Limitava-se a gritar: “... te vi!... te vi!...”
com a maior irreverência gramatical. Como
dizem que as últimas gerações andam muito
rebeldes e novidadeiras, achei natural que
também os passarinhos estivessem
contagiados pelo novo estilo humano.
(2º§) Mas logo a seguir, o mesmo passarinho –
ou seu filho, seu irmão, como posso saber, com
a folhagem cerrada da mangueira? – animou-se
a uma audácia maior. Não quis saber das duas
sílabas, e gritava apenas, daqui, dali, invisível e
brincalhão: “...vi!...vi!...” – o que me pareceu
ainda mais divertido.
(3º§) O tempo passou. O bem-te-vi deve ter
viajado; talvez seja cosmonauta, talvez tenha
voado com o seu time de futebol!...afinal tudo
pode acontecer com bem-te-vis tão
progressistas, que rompem com o canto da
família e mudam os lemas dos seus brasões.
Talvez tenha sido atacado por esses crioulos
fortes que agora saem do mato de repente e
disparam sem razão nenhuma contra o primeiro
vivente que encontram.
(4º§) Mas hoje tornei a ouvir um bem-te-vi
cantar. E cantava assim: “Bem-bem-bem...te-vi!” Pensei: “É uma nova escola poética que se
eleva das mangueiras!...” Depois o passarinho
mudou. E fez: “Bem-te-te-vi!” Tornei a refletir:
“Deve ser pequenino e estuda a sua cartilha...”
E o passarinho: “Bem-bem-bem-te-te-te-vi-vivi...!”
(5º§) Os ornitólogos devem saber se isto é caso
comum ou raro. Eu jamais tinha ouvido coisa
igual. Mas as crianças, que sabem mais do que
eu, e vão diretas aos assuntos, ouviram,
pensaram, e disseram: “Que engraçado! Um
bem-te-vi gago!” Então, talvez seja mesmo só
gagueira...
(Cecília Meireles)