Questões de Concurso Público Prefeitura de Governador Valadares - MG 2024 para Agente Comunitário de Saúde

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Q2509578 Português
Um amor conquistado

    Encontrei Ivan Lessa na fila de lotação do bairro e estávamos conversando, quando Ivan se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita. Olhei para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo com seu tranquilo cachorro puxado pela correia. Só que não era cachorro. A atitude toda era de cachorro, e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este é que não era. Tinha focinho acompridado de quem pode beber em copo fundo, rabo longo e duro – poderia, é verdade, ser apenas uma variação individual da raça. Ivan levantou a hipótese de quati, mas achei o bicho muito cachorro demais para ser quati, ou seria o quati mais resignado e enganado que jamais vi.

    Enquanto isso, o homem calmamente vindo. Calmamente, não; havia uma tensão nele, era uma calma de quem aceitou luta: seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um pitoresco; era por coragem que andava em público com o seu bicho. Ivan sugeriu a hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome. Mas nada me convencia. Só depois entendi que minha atrapalhação não era propriamente minha, vinha de que aquele bicho já não sabia mais quem ele era, e não podia, portanto, me transmitir uma imagem nítida.

    Até que o homem passou perto. Sem um sorriso, costas duras, altivamente se expondo – não, nunca foi fácil passar diante da fila humana. Fingia prescindir de admiração ou piedade; mas cada um de nós reconhece o martírio de quem está protegendo um sonho.

    – Que bicho é esse? Perguntei-lhe, e intuitivamente meu tom foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era aquele, mas na pergunta o tom talvez incluísse: “por que é que você faz isso? Que carência é essa que faz você inventar um cachorro? E por que não um cachorro mesmo, então? Pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir a graça desse bicho senão com uma coleira? Mas você esmaga uma rosa se apertá-la com força!”. Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras, sei que estou esmagando uma rosa, mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio, e é assim que muitas vezes tenho matado o que compreendo. (Se bem que, glória a Deus, sei mais silêncio que palavras.)

    O homem, sem parar, respondeu curto, embora sem aspereza. E era quati mesmo. Ficamos olhando. Nem Ivan nem eu sorrimos, ninguém na fila riu – esse era o tom, essa era a intuição. Ficamos olhando.

    Era um quati que se pensava cachorro. Às vezes, com seus gestos de cachorro, retinha o passo para cheirar as coisas, o que retesava a correia e retinha um pouco o dono, na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando esse quati que não sabe quem é. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: “mas, santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto?”. Imagino também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancólico, olhando as estrelas; “que tenho afinal? Que me falta? Sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio, esta nostalgia? Que ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço?”. E o homem, o único a poder livrá-lo da pergunta, esse homem nunca lhe dirá para não perdê-lo para sempre.

    Penso também na iminência de ódio que há no quati. Ele sente amor e gratidão pelo homem. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir: e o quati só não percebe que o odeia porque está vitalmente confuso.

    Mas se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de sua verdadeira natureza? Tremo ao pensar no fatal acaso que fizesse esse quati inesperadamente defrontar-se com outro quati, e nele reconhecer-se, ao pensar nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado: eu... nós... Bem sei, ele teria direito, quando soubesse, de massacrar o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser – adulterar-lhe a essência a fim de usá-lo. Eu sou pelo bicho, tomo o partido das vítimas do amor ruim. Mas imploro ao quati que perdoe o homem, e que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo, é claro.

(LISPECTOR, Clarice. Elenco de cronistas modernos – 25ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.)
Levando-se em consideração os mecanismos de coesão sequencial empregados na construção da articulação entre as partes do texto e para determinar relações entre as informações, indique, a seguir, a transcrição literal em que tal mecanismo pode ser identificado.
Alternativas
Q2509579 Português
Um amor conquistado

    Encontrei Ivan Lessa na fila de lotação do bairro e estávamos conversando, quando Ivan se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita. Olhei para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo com seu tranquilo cachorro puxado pela correia. Só que não era cachorro. A atitude toda era de cachorro, e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este é que não era. Tinha focinho acompridado de quem pode beber em copo fundo, rabo longo e duro – poderia, é verdade, ser apenas uma variação individual da raça. Ivan levantou a hipótese de quati, mas achei o bicho muito cachorro demais para ser quati, ou seria o quati mais resignado e enganado que jamais vi.

    Enquanto isso, o homem calmamente vindo. Calmamente, não; havia uma tensão nele, era uma calma de quem aceitou luta: seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um pitoresco; era por coragem que andava em público com o seu bicho. Ivan sugeriu a hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome. Mas nada me convencia. Só depois entendi que minha atrapalhação não era propriamente minha, vinha de que aquele bicho já não sabia mais quem ele era, e não podia, portanto, me transmitir uma imagem nítida.

    Até que o homem passou perto. Sem um sorriso, costas duras, altivamente se expondo – não, nunca foi fácil passar diante da fila humana. Fingia prescindir de admiração ou piedade; mas cada um de nós reconhece o martírio de quem está protegendo um sonho.

    – Que bicho é esse? Perguntei-lhe, e intuitivamente meu tom foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era aquele, mas na pergunta o tom talvez incluísse: “por que é que você faz isso? Que carência é essa que faz você inventar um cachorro? E por que não um cachorro mesmo, então? Pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir a graça desse bicho senão com uma coleira? Mas você esmaga uma rosa se apertá-la com força!”. Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras, sei que estou esmagando uma rosa, mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio, e é assim que muitas vezes tenho matado o que compreendo. (Se bem que, glória a Deus, sei mais silêncio que palavras.)

    O homem, sem parar, respondeu curto, embora sem aspereza. E era quati mesmo. Ficamos olhando. Nem Ivan nem eu sorrimos, ninguém na fila riu – esse era o tom, essa era a intuição. Ficamos olhando.

    Era um quati que se pensava cachorro. Às vezes, com seus gestos de cachorro, retinha o passo para cheirar as coisas, o que retesava a correia e retinha um pouco o dono, na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando esse quati que não sabe quem é. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: “mas, santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto?”. Imagino também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancólico, olhando as estrelas; “que tenho afinal? Que me falta? Sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio, esta nostalgia? Que ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço?”. E o homem, o único a poder livrá-lo da pergunta, esse homem nunca lhe dirá para não perdê-lo para sempre.

    Penso também na iminência de ódio que há no quati. Ele sente amor e gratidão pelo homem. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir: e o quati só não percebe que o odeia porque está vitalmente confuso.

    Mas se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de sua verdadeira natureza? Tremo ao pensar no fatal acaso que fizesse esse quati inesperadamente defrontar-se com outro quati, e nele reconhecer-se, ao pensar nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado: eu... nós... Bem sei, ele teria direito, quando soubesse, de massacrar o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser – adulterar-lhe a essência a fim de usá-lo. Eu sou pelo bicho, tomo o partido das vítimas do amor ruim. Mas imploro ao quati que perdoe o homem, e que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo, é claro.

(LISPECTOR, Clarice. Elenco de cronistas modernos – 25ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.)
Clarice Lispector foi uma das mais importantes escritoras brasileiras. Seu inconfundível estilo intimista traz descrições psicológicas e epifanias. Em relação à crônica narrativa “Um amor conquistado”, NÃO é possível inferir que:
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Q2509580 Português
Um amor conquistado

    Encontrei Ivan Lessa na fila de lotação do bairro e estávamos conversando, quando Ivan se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita. Olhei para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo com seu tranquilo cachorro puxado pela correia. Só que não era cachorro. A atitude toda era de cachorro, e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este é que não era. Tinha focinho acompridado de quem pode beber em copo fundo, rabo longo e duro – poderia, é verdade, ser apenas uma variação individual da raça. Ivan levantou a hipótese de quati, mas achei o bicho muito cachorro demais para ser quati, ou seria o quati mais resignado e enganado que jamais vi.

    Enquanto isso, o homem calmamente vindo. Calmamente, não; havia uma tensão nele, era uma calma de quem aceitou luta: seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um pitoresco; era por coragem que andava em público com o seu bicho. Ivan sugeriu a hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome. Mas nada me convencia. Só depois entendi que minha atrapalhação não era propriamente minha, vinha de que aquele bicho já não sabia mais quem ele era, e não podia, portanto, me transmitir uma imagem nítida.

    Até que o homem passou perto. Sem um sorriso, costas duras, altivamente se expondo – não, nunca foi fácil passar diante da fila humana. Fingia prescindir de admiração ou piedade; mas cada um de nós reconhece o martírio de quem está protegendo um sonho.

    – Que bicho é esse? Perguntei-lhe, e intuitivamente meu tom foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era aquele, mas na pergunta o tom talvez incluísse: “por que é que você faz isso? Que carência é essa que faz você inventar um cachorro? E por que não um cachorro mesmo, então? Pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir a graça desse bicho senão com uma coleira? Mas você esmaga uma rosa se apertá-la com força!”. Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras, sei que estou esmagando uma rosa, mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio, e é assim que muitas vezes tenho matado o que compreendo. (Se bem que, glória a Deus, sei mais silêncio que palavras.)

    O homem, sem parar, respondeu curto, embora sem aspereza. E era quati mesmo. Ficamos olhando. Nem Ivan nem eu sorrimos, ninguém na fila riu – esse era o tom, essa era a intuição. Ficamos olhando.

    Era um quati que se pensava cachorro. Às vezes, com seus gestos de cachorro, retinha o passo para cheirar as coisas, o que retesava a correia e retinha um pouco o dono, na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando esse quati que não sabe quem é. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: “mas, santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto?”. Imagino também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancólico, olhando as estrelas; “que tenho afinal? Que me falta? Sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio, esta nostalgia? Que ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço?”. E o homem, o único a poder livrá-lo da pergunta, esse homem nunca lhe dirá para não perdê-lo para sempre.

    Penso também na iminência de ódio que há no quati. Ele sente amor e gratidão pelo homem. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir: e o quati só não percebe que o odeia porque está vitalmente confuso.

    Mas se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de sua verdadeira natureza? Tremo ao pensar no fatal acaso que fizesse esse quati inesperadamente defrontar-se com outro quati, e nele reconhecer-se, ao pensar nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado: eu... nós... Bem sei, ele teria direito, quando soubesse, de massacrar o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser – adulterar-lhe a essência a fim de usá-lo. Eu sou pelo bicho, tomo o partido das vítimas do amor ruim. Mas imploro ao quati que perdoe o homem, e que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo, é claro.

(LISPECTOR, Clarice. Elenco de cronistas modernos – 25ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.)
Considerando o contexto em que as palavras foram utilizadas e sua construção de sentido, assinale a alternativa que contém o significado INCOERENTE para as palavras destacadas nas transcrições textuais.
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Q2509581 Português
Um amor conquistado

    Encontrei Ivan Lessa na fila de lotação do bairro e estávamos conversando, quando Ivan se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita. Olhei para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo com seu tranquilo cachorro puxado pela correia. Só que não era cachorro. A atitude toda era de cachorro, e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este é que não era. Tinha focinho acompridado de quem pode beber em copo fundo, rabo longo e duro – poderia, é verdade, ser apenas uma variação individual da raça. Ivan levantou a hipótese de quati, mas achei o bicho muito cachorro demais para ser quati, ou seria o quati mais resignado e enganado que jamais vi.

    Enquanto isso, o homem calmamente vindo. Calmamente, não; havia uma tensão nele, era uma calma de quem aceitou luta: seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um pitoresco; era por coragem que andava em público com o seu bicho. Ivan sugeriu a hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome. Mas nada me convencia. Só depois entendi que minha atrapalhação não era propriamente minha, vinha de que aquele bicho já não sabia mais quem ele era, e não podia, portanto, me transmitir uma imagem nítida.

    Até que o homem passou perto. Sem um sorriso, costas duras, altivamente se expondo – não, nunca foi fácil passar diante da fila humana. Fingia prescindir de admiração ou piedade; mas cada um de nós reconhece o martírio de quem está protegendo um sonho.

    – Que bicho é esse? Perguntei-lhe, e intuitivamente meu tom foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era aquele, mas na pergunta o tom talvez incluísse: “por que é que você faz isso? Que carência é essa que faz você inventar um cachorro? E por que não um cachorro mesmo, então? Pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir a graça desse bicho senão com uma coleira? Mas você esmaga uma rosa se apertá-la com força!”. Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras, sei que estou esmagando uma rosa, mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio, e é assim que muitas vezes tenho matado o que compreendo. (Se bem que, glória a Deus, sei mais silêncio que palavras.)

    O homem, sem parar, respondeu curto, embora sem aspereza. E era quati mesmo. Ficamos olhando. Nem Ivan nem eu sorrimos, ninguém na fila riu – esse era o tom, essa era a intuição. Ficamos olhando.

    Era um quati que se pensava cachorro. Às vezes, com seus gestos de cachorro, retinha o passo para cheirar as coisas, o que retesava a correia e retinha um pouco o dono, na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando esse quati que não sabe quem é. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: “mas, santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto?”. Imagino também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancólico, olhando as estrelas; “que tenho afinal? Que me falta? Sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio, esta nostalgia? Que ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço?”. E o homem, o único a poder livrá-lo da pergunta, esse homem nunca lhe dirá para não perdê-lo para sempre.

    Penso também na iminência de ódio que há no quati. Ele sente amor e gratidão pelo homem. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir: e o quati só não percebe que o odeia porque está vitalmente confuso.

    Mas se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de sua verdadeira natureza? Tremo ao pensar no fatal acaso que fizesse esse quati inesperadamente defrontar-se com outro quati, e nele reconhecer-se, ao pensar nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado: eu... nós... Bem sei, ele teria direito, quando soubesse, de massacrar o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser – adulterar-lhe a essência a fim de usá-lo. Eu sou pelo bicho, tomo o partido das vítimas do amor ruim. Mas imploro ao quati que perdoe o homem, e que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo, é claro.

(LISPECTOR, Clarice. Elenco de cronistas modernos – 25ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.)
As palavras sublinhadas nas frases das alternativas a seguir possuem o mesmo valor semântico, EXCETO:
Alternativas
Q2509582 Português
Um amor conquistado

    Encontrei Ivan Lessa na fila de lotação do bairro e estávamos conversando, quando Ivan se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita. Olhei para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo com seu tranquilo cachorro puxado pela correia. Só que não era cachorro. A atitude toda era de cachorro, e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este é que não era. Tinha focinho acompridado de quem pode beber em copo fundo, rabo longo e duro – poderia, é verdade, ser apenas uma variação individual da raça. Ivan levantou a hipótese de quati, mas achei o bicho muito cachorro demais para ser quati, ou seria o quati mais resignado e enganado que jamais vi.

    Enquanto isso, o homem calmamente vindo. Calmamente, não; havia uma tensão nele, era uma calma de quem aceitou luta: seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um pitoresco; era por coragem que andava em público com o seu bicho. Ivan sugeriu a hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome. Mas nada me convencia. Só depois entendi que minha atrapalhação não era propriamente minha, vinha de que aquele bicho já não sabia mais quem ele era, e não podia, portanto, me transmitir uma imagem nítida.

    Até que o homem passou perto. Sem um sorriso, costas duras, altivamente se expondo – não, nunca foi fácil passar diante da fila humana. Fingia prescindir de admiração ou piedade; mas cada um de nós reconhece o martírio de quem está protegendo um sonho.

    – Que bicho é esse? Perguntei-lhe, e intuitivamente meu tom foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era aquele, mas na pergunta o tom talvez incluísse: “por que é que você faz isso? Que carência é essa que faz você inventar um cachorro? E por que não um cachorro mesmo, então? Pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir a graça desse bicho senão com uma coleira? Mas você esmaga uma rosa se apertá-la com força!”. Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras, sei que estou esmagando uma rosa, mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio, e é assim que muitas vezes tenho matado o que compreendo. (Se bem que, glória a Deus, sei mais silêncio que palavras.)

    O homem, sem parar, respondeu curto, embora sem aspereza. E era quati mesmo. Ficamos olhando. Nem Ivan nem eu sorrimos, ninguém na fila riu – esse era o tom, essa era a intuição. Ficamos olhando.

    Era um quati que se pensava cachorro. Às vezes, com seus gestos de cachorro, retinha o passo para cheirar as coisas, o que retesava a correia e retinha um pouco o dono, na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando esse quati que não sabe quem é. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: “mas, santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto?”. Imagino também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancólico, olhando as estrelas; “que tenho afinal? Que me falta? Sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio, esta nostalgia? Que ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço?”. E o homem, o único a poder livrá-lo da pergunta, esse homem nunca lhe dirá para não perdê-lo para sempre.

    Penso também na iminência de ódio que há no quati. Ele sente amor e gratidão pelo homem. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir: e o quati só não percebe que o odeia porque está vitalmente confuso.

    Mas se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de sua verdadeira natureza? Tremo ao pensar no fatal acaso que fizesse esse quati inesperadamente defrontar-se com outro quati, e nele reconhecer-se, ao pensar nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado: eu... nós... Bem sei, ele teria direito, quando soubesse, de massacrar o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser – adulterar-lhe a essência a fim de usá-lo. Eu sou pelo bicho, tomo o partido das vítimas do amor ruim. Mas imploro ao quati que perdoe o homem, e que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo, é claro.

(LISPECTOR, Clarice. Elenco de cronistas modernos – 25ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.)
Em “Antes de abandoná-lo, é claro.” (8º§), o termo sublinhado se refere ao:
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Respostas
1: D
2: C
3: D
4: B
5: C