Leia o conto, de Heloísa Seixas, publicado na revista
Domingo do Jornal do Brasil em 02/04/2006, para
responder a questão..
Viajante
Lá está ela.
Vergada, sim – mas soberba. O cabelo branco preso num
coque no alto da cabeça, o corpo muito magro apoiado
na bengala. Parada junto ao meio-fio, do outro lado da
rua, prepara-se para atravessar.
Eu a vejo de longe, mas sua presença se impõe. O
vestido é simples, de algodão talvez, um corte reto, sem
mangas, sem bolsos. Os sapatos, um mocassim preto, de
gáspea alta, pesado mas firme, talvez pela necessidade
de um bom apoio para pés tão incertos, tão cansados. Na
mão direita, a bengala; na esquerda, uma sacola de
plástico, de supermercado. Tudo muito prosaico,
simples, e no entanto há uma aura de majestade ali.
Agora, o sinal abriu. E ela começa a atravessar.
Da outra calçada, parada, observo. Ela desce o meio-fio
com um passo leve, incerto, quase etéreo. Começo a me
preocupar. Sei que aquele sinal é um sinal de pedestre e,
como vivemos sob a tirania do automóvel, ele abre e
fecha muito rápido. Os carros não podem esperar. Não
vai dar tempo, penso. Mas a mulher não parece se
importar.
Um passo depois do outro, lá vai ela, com todo o vagar
do mundo, apoiando-se em sua bengala. E o sinal
começa a piscar, anunciando que o tempo do ser
humano se esgota, que este precisa abrir caminho para a
máquina.
Estremeço, pensando: preciso fazer alguma coisa. Mas
não faço. Continuo imóvel, pregada ao chão.
Pronto. O sinal fechou. E ela ainda está no meio da rua.
Mas nenhum carro avança, parecem contidos pela
realeza da mulher. E ela segue, sem apressar o passo,
sem olhar para os lados, sem temor algum. Parece maior
do que todos nós, do que o mundo inteiro, parece nos
falar de uma outra maneira de viver, mais amena, mais
gentil. Viajante do tempo, é como se caminhasse por uma
Ipanema de setenta anos atrás.
Só quando afinal sobe na calçada do outro lado, só
então, os automóveis arrancam. E eu a vejo afastar-se,
no mesmo e imperturbável passo.
Talvez eu devesse ter ido ao seu encontro, tentado
ajudar. Mas não pude. Sua dignidade, tamanha, me
intimidou. E fiquei ali, imóvel, esmagada pela imponência
daquela mulher-navio que, impávida e majestosa,
singrava o tempo.
Disponível em: https://heloisaseixas.com.br/contos-minimos/2006-2/