Conheço infantes que falam o que não devem, porque
dizem a verdade. Crianças e bêbados, já foi escrito, possuem
estranho compromisso com o verídico.
Anos atrás, uma amiga decidiu carregar um pouco na
tradição familiar. Ela me disse que acabava de retornar “da
fazenda” do pai. A filha que nos escutava (tinha algo como
10 anos) quase gritou: “Fazenda, mãe? Aquilo não é nem
sítio!”. Menina inconveniente, desagradável, pouco educada e,
como descobri depois, mais exata na descrição da propriedade
rural. Era mais uma casinha cercada de árvores singelas do
que um latifúndio.
A pessoa que abre a boca de forma inconveniente,
revelando contradições e trazendo à luz inconsistências,
pode ser um … boquirroto. Também empregamos o termo
para designar quem não guarda segredo. Quando o objeto da
indiscrição não somos nós, nada mais divertido do que esse
ser. Funciona como a criança do conto A Roupa Nova do Rei
(de Hans Andersen): diz o que todos viam e tinham medo de
trazer a público. O indiscreto libera demônios coletivos reprimidos pelo medo e pela inconveniência.
Aprendi muito cedo que a liberdade de expressão, quando
anunciada, é um risco. Aprendi que o cuidado deve ser
redobrado diante do convite à sinceridade. Existem barreiras
intransponíveis, pontos cegos, muralhas impenetráveis no
mundo humano. Uma delas é a situação em que uma pergunta
envolve uma crença fundamental da pessoa.
Minha iluminada amiga e meu onisciente amigo: invejo-os.
Se vocês dizem o que querem, na hora que desejam, vocês têm
uma ou todas as seguintes características: riqueza extrema,
poder político enorme, tamanho físico intimidador, equipe de
segurança numerosa, total estabilidade afetiva, autonomia
diante do mundo, saúde plena e coragem épica. Sem nenhuma
das oito características anteriores, eu, humilde mortal, prometo, lacanianamente*, dizer-lhes a verdade que vocês estão
preparados para ouvir. Da mesma forma, direi a minha verdade:
limitada, cheia de impurezas e concepções equivocadas, ou
seja, a que eu estou preparado para enunciar. O demônio é
o pai da mentira, porque ele não é onipotente. A verdade total
pertence a Deus. Nós? Adeus e alguma esperança...
(Leandro Karnal, O boquirroto. Diário da Região, 19.06.2022. Adaptado)
* Referência ao psicanalista Jacques Lacan.