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Q947085 Português

Texto 1

Escutatória


Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.


Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma”. Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. As árvores e as flores entram. Mas – coitadinhas delas – entram e caem num mar de ideias. São misturadas nas palavras da filosofia que moram em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver é preciso que a cabeça esteja vazia.


Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.” Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. Certo estava Lichtenberg – citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.” Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…


Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. É música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós – como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos.

ALVES, R. Escutatória <<http://www.institutorubemalves.org.br/rubem-alves/carpe-diem/cronicas/escutatoria-3/>>, Acesso em 26/08/2017. [Adaptado]

Analise as afirmativas abaixo, considerando-as em relação ao texto 1.


1. O autor alterna as formas “nós” e “a gente” para se referir à primeira pessoa do plural, evidenciando não só um uso variável de formas pronominais mas também traços de informalidade no texto.

2. No terceiro parágrafo, o sinal de dois-pontos depois de Alberto Caeiro e de Murilo Mendes introduz a fala direta dessas duas pessoas, respectivamente.

3. Em “Daí a dificuldade […]” (3° parágrafo), a palavra sublinhada funciona como conector que introduz uma informação decorrente do que foi dito anteriormente, podendo ser substituída por “Donde”, sem prejuízo de significado.

4. Em “sem misturar o que ele diz […]. Como se aquilo que ele diz” (3°parágrafo), o referente do pronome sublinhado nas duas ocorrências é definido, sendo o indivíduo identificado no contexto precedente.

5. Em “As árvores e as flores entram. Mas – coitadinhas delas – entram e caem num mar de ideias.” (2° parágrafo) e “No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada.” (4° parágrafo), os segmentos entre travessões são comentários do autor que, se retirados, não alteram as relações sintáticas entre os demais constituintes das frases.


Assinale a alternativa que indica todas as afirmativas corretas.

Alternativas

Comentários

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GAB D - D

São corretas apenas as afirmativas 1, 3 e 5.

Comentário muito explicativo! Parabéns.

1. O autor alterna as formas “nós” e “a gente” para se referir à primeira pessoa do plural, evidenciando não só um uso variável de formas pronominais mas também traços de informalidade no texto. (CORRETO, nós e a gente são primeira pessoa do plural, apesar de "a gente" dever concordar com a terceira pessoa do singular. Com certeza, "a gente" é um traço de informalidade).

2. No terceiro parágrafo, o sinal de dois-pontos depois de Alberto Caeiro e de Murilo Mendes introduz a fala direta dessas duas pessoas, respectivamente. (ERRADO - LEIA ATENTAMENTE: Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito (...) Se o autor está parafraseando, então o dois pontos não podem indicar fala direta).

3.Em “Daí a dificuldade […]” (3° parágrafo), a palavra sublinhada funciona como conector que introduz uma informação decorrente do que foi dito anteriormente, podendo ser substituída por “Donde”, sem prejuízo de significado.(CORRETA - complicado, peçam comentário do professor, pois, pelo que eu sei, "donde" deveria ser usado apenas para se referir a LUGARES, não vejo uma referência a um lugar especificamente. "Daí" foi usado como conector, significando que a dificuldade está --> "na falta de silêncio da alma", mas "a falta de silêncio da alma" não é um lugar propriamente dito, não sei, confuso. Talvez, seja minha forma de interpretar que está errada).

4.Em “sem misturar o que ele diz […]. Como se aquilo que ele diz” (3°parágrafo), o referente do pronome sublinhado nas duas ocorrências é definido, sendo o indivíduo identificado no contexto precedente. (ERRADO - ELE está fazendo referência "AO OUTRO", mas não sabemos quem é este outro, pode ser qualquer pessoa, ou seja, o precedente não é um indivíduo IDENTIFICADO).

5.Em “As árvores e as flores entram. Mas – coitadinhas delas – entram e caem num mar de ideias.” (2° parágrafo) e “No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada.” (4° parágrafo), os segmentos entre travessões são comentários do autor que, se retirados, não alteram as relações sintáticas entre os demais constituintes das frases. (CORRETO - esta foi a mais fácil, as frases entre travessões são comentários esparsos do autor, não alteram a sintaxe se retiradas. Na verdade, os travessões estão fazendo as vezes de vírgula).

A (2) está errada, pois a segunda fala é de Lichtenberg que foi citado por Murilo Mendes e não deste propriamente dito...

Vacilei. Sabia que a alternativa 2 esta errada, desmarquei-a e demorei tanto que esqueci que ela estava errada e acabei marcando segue o jogo

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