No trecho “E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esqu...
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Ano: 2023
Banca:
Instituto Consulplan
Órgão:
FEPAM - RS
Provas:
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Q2122489
Português
Texto associado
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque
não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque
não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as
cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a
acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece
o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado
porque está na hora. A tomar o café correndo porque está
atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o
tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para
almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no
ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado
sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números
para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar
nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de
paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no
telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber
um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser
visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de
que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a
pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar
mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir
as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar
condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias
da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte
dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de
madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no
pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em
doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor
aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está
cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e
sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há
muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito
porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para
preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A
gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se
gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco,
1996.)
No trecho “E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.” (1º§), a oração destacada exerce
a função sintática de subordinada adverbial