Observe: “Uma razão a mais para valorizar esse tempo de aleg...
FESTA
Uma explicação simples para a proliferação nas favelas e nos subúrbios de campinhos de terra batida: o futebol, no Brasil, é esse fenômeno que leva à gloria e à fortuna um menino pobre, quase sempre negro ou mulato, o que já o situa em um país que aboliu a escravidão mas não a sua herança.
Pelé ou Neymar, esse menino serve de espelho às esperanças de
um povo inteiro a quem o futebol oferece uma oportunidade —
rara, quase única — de se sentir o melhor do mundo. A
centralidade do futebol na vida dos brasileiros é razão de sobra
para vivermos este mês em estado de euforia como se na Copa
do Mundo estivesse em jogo a nossa identidade. (...)
A Copa do Mundo revela ambiguidades de nosso tempo. Um bilhão e meio de pessoas assistem às mesmas imagens confirmando o avanço da globalização. Mas o conteúdo das imagens a que todos assistem afirma os pertencimentos nacionais, expressos com símbolos ancestrais, bandeiras, emblemas, hinos entoados com lágrimas nos olhos. O nosso é cantado a capela pelos jogadores e uma multidão em verde e amarelo desafiando o regulamento da FIFA, entidade sem pertencimento que salpica no espetáculo, em poucas notas mal tocadas, o que para cada povo é a evocação emocionada de sua história. No mundo de hoje comunicação e mobilidade se fazem em escala global, mas os sentimentos continuam tingidos pelas cores da infância.
O respeito às regras, saber ganhar e saber perder, são conquistas
de um pacto civilizatório cuja validade se testa a cada jogo. (...)
O futebol é useiro e vezeiro em contrariar cenários previsíveis. O
acaso pode ser um desmancha-prazeres. A multidão que se
identifica com os craques e que conta com eles para realizar o
gesto de grandeza que em vidas sem aventuras nunca acontece,
essa massa habitada pela nostalgia da glória deifica os jogadores
e esquece — e por isso não perdoa — que deuses às vezes
tropeçam nos próprios pés, na angústia e no medo.
É essa irrupção do acaso que faz do futebol mais do que um
esporte, um jogo, cuja emoção nasce de sua indisfarçada
semelhança com a própria vida, onde sucesso ou fracasso
depende tanto do imponderável. Não falo de destino porque a
palavra tem a nobreza das tragédias gregas, do que estava escrito
e fatalmente se cumprirá. O acaso é banal, é próximo do absurdo.
É, como poderia não ter sido. Se o acaso é infeliz chamamos de
fatalidade. Feliz, de sorte. O acaso decide um jogo. Nem sempre a
vida é justa, é o que o futebol ensina.
(...)
A melhor técnica, o treino mais cuidadoso estão sujeitos aos deslizes humanos.
(...)
O melhor do futebol é a alegria de torcer. Essa Copa do Mundo vem sendo uma festa vivida nos estádios, nas ruas e em cada casa onde se reúnem os amigos para misturar ansiedades. A cada gol da seleção há um grito que vem das entranhas da cidade. A cidade grita. Nunca tinha ouvido o Rio gritar de alegria. Um bairro ou outro, talvez, em decisões de campeonato. Nunca a cidade inteira, um país inteiro. Em tempos de justificado desencanto e legítimo mau humor, precisamos muito dessa alegria que se estende noite adentro nas celebrações e na confraternização das torcidas.
Passada a Copa, na retomada do cotidiano, é provável que
encontremos intactos o desencanto e o mau humor, já que não
há, à vista, sinais de mudança no que os causou. Uma razão a
mais para valorizar esse tempo de alegria na vida de uma
população que, no jogo da vida, sofre tantas faltas.
(OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. Festa. Seção: Opinião. O Globo,
21.6.2014, p. 20).
Observe: “Uma razão a mais para valorizar esse tempo de alegria na vida de uma população que, no jogo da vida, sofre tantas faltas” (9º §).
Nas passagens destacadas, o deslocamento do campo semântico do futebol para “o jogo da vida” e o uso de “sofrer faltas”, em uma acepção diferente da mesma expressão usada naquele esporte, proporcionam ao texto um efeito:
Gabarito comentado
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Para responder a esta questão de interpretação de texto, precisamos entender como o autor utiliza o campo semântico do futebol para abordar aspectos da vida cotidiana. Isso envolve a análise de metáforas e a semântica do texto.
Alternativa correta: D - estético, porque, por meio de um expressivo jogo semântico, une dois conteúdos essenciais do texto.
A alternativa D é a correta porque o texto faz um uso estético e metafórico do futebol para falar sobre a vida. Ao utilizar expressões como "no jogo da vida" e "sofre tantas faltas", o autor não está tratando apenas do esporte, mas sim estabelecendo uma relação entre as dificuldades enfrentadas no cotidiano e as situações de um jogo de futebol. Esse tipo de abordagem é comum em textos opinativos e literários, onde se busca uma conexão emocional e intelectual com o leitor através de figuras de linguagem.
Agora, vejamos por que as outras alternativas estão incorretas:
A - descabido, por misturar inadequadamente diferentes esferas semânticas: A mistura de esferas semânticas é, na verdade, um recurso estilístico que enriquece o texto, e não algo descabido. A comparação entre o futebol e a vida é feita de maneira coerente e com propósito.
B - empobrecedor, por desviar-se e, consequentemente, fugir do tema “Copa do Mundo”: O texto não se desvia do tema, mas sim o expande, o que não empobrece, mas enriquece a discussão ao trazer reflexões sobre a vida e a sociedade.
C - estranho ao emprego usual de tais palavras e expressões, o que indica domínio precário da norma culta: O texto não mostra um domínio precário da norma culta. Pelo contrário, ele utiliza a norma de uma forma criativa e deliberada, o que é uma característica dos bons textos opinativos.
E - inadequado, porque “sofrer faltas” é expressão privativa da linguagem esportiva: A expressão "sofrer faltas" é usada de forma metafórica para se referir às dificuldades e obstáculos da vida, o que é uma aplicação perfeitamente adequada e estilisticamente rica.
Em suma, o uso de metáforas e deslocamentos semânticos no texto fornece uma camada adicional de significado, que é apreciada em análises literárias e interpretativas. Portanto, a resposta correta é a alternativa D, que reconhece o valor estético e expressivo dessa técnica.
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Comentários
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Primeira prova da FGV em que acertei todas de português.
Prova totalmente atípica da FGV: muita gramática e respostas bem claras no texto.
NEM LI O TEXTO, FUI DIRETO PRA QUESTÃO E ACERTEI.
COISA RARÍSSIMA NA FGV!!!!
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