Na crônica, o autor
Próximas questões
Com base no mesmo assunto
Q489572
Português
Texto associado
Leia a crônica para responder a questão.
Reflexões sobre o travessão
Adoro sinais de pontuação. Eles são o detalhe
mais sofisticado da linguagem visível, isto é, a escrita.
“Linguagem visível” – não é uma estranha imagem? E
vejam como o travessão da frase anterior deixou o
leitor respirar graficamente, aquele microssegundo de
pausa que destaca, como uma discreta moldura, a
informação seguinte! Já esse ponto de exclamação
indicou imediatamente ao leitor, sem nenhuma
explicação acessória, a admiração do cronista. Parece
óbvio, não? – mas vejam, na simples vírgula depois
do “óbvio”, e imediatamente depois do “não”
(observem o detalhe das aspas, e, agora, dos
parênteses), o ponto de interrogação já avisa o leitor,
simulando a entonação, de que se trata de uma
pergunta.
Parece óbvio – mas não é. Houve uma longa
caminhada histórica, de séculos, para a escrita ser
realmente pensada como um sistema de leitura
silenciosa, que só a partir do século 16 começou a se
tornar comum. Antigamente, a linguagem escrita era
toda articulada pensando na voz alta e na leitura
pública (também porque havia pouquíssimas cópias
de texto disponíveis, que precisavam ser socializadas,
antes que Gutemberg libertasse o trabalho braçal da
reprodução). Daí, por exemplo, que nasceu a cedilha,
esta curiosa excrescência que todo usuário de teclado
não adaptado ao português sofre para encontrar ou
formatar. Num momento da história do latim, a letra
“C”, em alguns casos, passou a ser pronunciada como
“ts” ou “s” (e não mais com o som de “k”, como em
“casa”) – e, para que o leitor não errasse a leitura, o
escriba escrupuloso anotava, embaixo do “C”, um
pequeno “s”. E assim nasceu o híbrido “Ç”. Aquele
rabinho que tanto reprova nos exames de redação e
nos faz passar vergonha ortográfica (a pior de todas!
– embora, tecnicamente falando, seja a mais
desimportante, porque puramente convencional), o tal
rabinho não passa de um ésse disfarçado. E há outras
curiosidades – o próprio ponto, esse sinal mortal que
fecha a frase, também foi uma invenção relativamente
recente da história da escrita, para informar o leitor
que uma frase acabava e começava outra.
Linguagem visível: (vejam como esses dois pontos
são plenos de sentido!) colocar no papel, como dese-
nho, um código capaz de representar a infinita riqueza
e variedade da nossa fala de todo dia (Para os curio-
sos, Uma história da leitura, de Alberto Manguel, é um
livro maravilhoso sobre esta passagem). Mas eu que-
ria falar era do travessão – sou adepto deste recurso
sofisticado, que abre clareiras de sentido apenas por
abrir espaço no meio da frase. Além de indicar, no
início dos parágrafos, que alguém vai falar, um recur-
so romanesco clássico, hoje cada vez mais substituí-
do pelas aspas (o padrão inglês de marca de diálogo),
que são boas, reconheço, mas um tantinho “sujas” na
“mancha” da página, que fica cheia de “pendurica-
lhos”.
Já o travessão – mas acabou o espaço.
TEZZA, Cristovão. Reflexão sobre o travessão. Gazeta do Povo,
Curitiba, p. 3, 21 de ago. 2012.
Reflexões sobre o travessão
Adoro sinais de pontuação. Eles são o detalhe
mais sofisticado da linguagem visível, isto é, a escrita.
“Linguagem visível” – não é uma estranha imagem? E
vejam como o travessão da frase anterior deixou o
leitor respirar graficamente, aquele microssegundo de
pausa que destaca, como uma discreta moldura, a
informação seguinte! Já esse ponto de exclamação
indicou imediatamente ao leitor, sem nenhuma
explicação acessória, a admiração do cronista. Parece
óbvio, não? – mas vejam, na simples vírgula depois
do “óbvio”, e imediatamente depois do “não”
(observem o detalhe das aspas, e, agora, dos
parênteses), o ponto de interrogação já avisa o leitor,
simulando a entonação, de que se trata de uma
pergunta.
Parece óbvio – mas não é. Houve uma longa
caminhada histórica, de séculos, para a escrita ser
realmente pensada como um sistema de leitura
silenciosa, que só a partir do século 16 começou a se
tornar comum. Antigamente, a linguagem escrita era
toda articulada pensando na voz alta e na leitura
pública (também porque havia pouquíssimas cópias
de texto disponíveis, que precisavam ser socializadas,
antes que Gutemberg libertasse o trabalho braçal da
reprodução). Daí, por exemplo, que nasceu a cedilha,
esta curiosa excrescência que todo usuário de teclado
não adaptado ao português sofre para encontrar ou
formatar. Num momento da história do latim, a letra
“C”, em alguns casos, passou a ser pronunciada como
“ts” ou “s” (e não mais com o som de “k”, como em
“casa”) – e, para que o leitor não errasse a leitura, o
escriba escrupuloso anotava, embaixo do “C”, um
pequeno “s”. E assim nasceu o híbrido “Ç”. Aquele
rabinho que tanto reprova nos exames de redação e
nos faz passar vergonha ortográfica (a pior de todas!
– embora, tecnicamente falando, seja a mais
desimportante, porque puramente convencional), o tal
rabinho não passa de um ésse disfarçado. E há outras
curiosidades – o próprio ponto, esse sinal mortal que
fecha a frase, também foi uma invenção relativamente
recente da história da escrita, para informar o leitor
que uma frase acabava e começava outra.
Linguagem visível: (vejam como esses dois pontos
são plenos de sentido!) colocar no papel, como dese-
nho, um código capaz de representar a infinita riqueza
e variedade da nossa fala de todo dia (Para os curio-
sos, Uma história da leitura, de Alberto Manguel, é um
livro maravilhoso sobre esta passagem). Mas eu que-
ria falar era do travessão – sou adepto deste recurso
sofisticado, que abre clareiras de sentido apenas por
abrir espaço no meio da frase. Além de indicar, no
início dos parágrafos, que alguém vai falar, um recur-
so romanesco clássico, hoje cada vez mais substituí-
do pelas aspas (o padrão inglês de marca de diálogo),
que são boas, reconheço, mas um tantinho “sujas” na
“mancha” da página, que fica cheia de “pendurica-
lhos”.
Já o travessão – mas acabou o espaço.
TEZZA, Cristovão. Reflexão sobre o travessão. Gazeta do Povo,
Curitiba, p. 3, 21 de ago. 2012.
Na crônica, o autor