Machado de Assis inicia o conto Pai contra Mãe — escrito em ...
A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pego.
Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: “gratificar-se-á generosamente”, ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o açoitasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas, por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir, também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Machado de Assis. Pai contra Mãe. In: Machado de Assis.
Relíquias da casa velha, 1906 (com adaptações).
Machado de Assis inicia o conto Pai contra Mãe — escrito em 1906 e publicado na coletânea Relíquias da casa velha —, mencionando “ofícios e aparelhos” da escravidão no Brasil. O conto aborda a história de Cândido Neves, personagem que trabalhava na captura de escravos fugidios. Considerando o fragmento desse conto apresentado anteriormente, julgue o item a seguir.
No primeiro período do quarto parágrafo, a forma pronominal “lho” retoma os termos “Quem” e “escravo”.
Comentários
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@@ GABARITO: CERTO
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Comentário:
No primeiro período do quarto parágrafo do texto, temos a expressão “dava algum dinheiro a quem lho levasse”. O pronome “lho” é um pronome átono que funciona como a combinação do pronome pessoal “lhe” (que se refere ao objeto indireto) com o pronome “o” (que retoma o objeto direto).
Nesse caso, o pronome “lho” retoma a ideia do termo "escravo", pois quem levasse o escravo de volta, recebia a gratificação.
O termo "quem" faz referência à pessoa que tivesse feito a captura, e o pronome "lho" se refere a essa pessoa levando o "escravo".
Assim, a forma pronominal "lho" está corretamente retomando os termos "quem" e "escravo", ou seja, é a maneira de substituir de forma coesa o complemento da frase. Portanto, a afirmação está correta.
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[1] Construções arcaicas mas ainda figurando nas gramáticas e em registros superformais são aquelas em que o pronome átono se contrai com outro átono. Veja que contrações “bisonhas”:
– Basta de discussão sobre a roupa! Ele dar-ma-á de presente e pronto. = Ele dará a roupa (= a) para mim (= me)... (me + a = ma)
– Ele viu o carro e instou com o dono para que lho vendesse. = ... para que vendesse o carro (= o) a ele (= lhe)... (lhe + o = lho)
– Deram-ta! = Deram-te uma bela lição (= a)!... (te + a = ta)
[2] Há uma construção clássica na Língua Portuguesa que permite a substituição de dois complementos verbais diferentes ao mesmo tempo:
Eu entreguei o presente ao menino.
o presente — objeto direto = o
ao menino — objeto indireto = lhe
Eu lho entreguei. (lhe + o)
.
Obs: Percebam que o LHO vai trazer consigo tanto a contração do objeto direto quanto do objeto indireto.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse.
... quem levasse o escravo (OD) a quem (OI) perdia...
Fonte:
[1] Pestana
[2] Martino, Agnaldo
Questão difícil da poha, qualquer erro me avisem!
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