Em “Li com aflição uma crônica de Lima Barreto...” (4º parág...
Sobre a forma exata das palavras, onde talvez more sua beleza
1 Vivo em descompasso com meu tempo. Uma declaração como essa poderia se completar com todo tipo de
contravenções e antinomias, mas hoje me refiro a uma coisa mesquinha, irrelevante, a uma dessas
implicâncias bestas que tão bem nos definem. Tenho uma atenção obstinada à grafia das palavras, e sofro com
o descaso que vai se alastrando por aí, em quase toda escrita. Sinto que cada palavra forma um desenho na
página, um desenho incompleto se lhe usurpam uma letra, um desenho disforme se lhe agregam um desatino.
Como se um mero deslize do dedo pudesse turvar toda a mensagem, deslocando o foco em direção à falha,
àquilo que jamais o mereceria.
2 Acabo de assistir a uma série um tanto tola sobre uma mulher que acossa um homem com insistência doentia,
com grande violência, inclusive mandando-lhe centenas de mensagens obscenas e hostis num só dia. Minha
sensação era de que nunca poderia me relacionar com alguém assim, não por sua insanidade, sua psicopatia.
O que eu não conseguiria relevar numa mulher como ela seria a sintaxe absurda e a infinidade de erros
ortográficos a me atingir a cada instante. Quando me dei conta disso, da aflição menor que até superava as
aflições maiores, temi que a loucura pudesse estar em mim.
3 Vivo em descompasso com meu tempo, é o que digo, na contramão da pressa e da displicência, do desleixo
escancarado, ou de um jovial descompromisso. Por um tempo pensei que me sentisse assim por ser escritor,
por ver nas palavras meu instrumento de trabalho, por confiar a elas o sentido da minha existência, ou, se não
tanto, ao menos o meu sustento. Mas fui me deparando com uns quantos exemplos de escritores distraídos,
escritores admiráveis e no entanto desleixados, conformados com a imprecisão das frases que propagam por
aí.
4 Li com aflição uma crônica de Lima Barreto em que ele conta de sua letra sofrível, indecifrável, e dos
embaraços que lhe cria quando envia aos jornais seus manuscritos. A letra é sua inimiga, é a traição em suas
próprias mãos, "esse abutre que me devora diariamente a fraca reputação e a apoucada inteligência", ele se
martiriza. Sofre, sim, diz que lê seus textos no dia seguinte com vontade de chorar, de matar, de suicidar-se.
Pensa até em se casar para resolver o problema, e se apaixona por uma jovem apenas por sua cursiva
irrepreensível. Mas nada faz de fato, aceita sua sina. Nem sequer passa a escrever na máquina, por julgar
cansativo, por querer fugir ao trabalho de escrever à mão e passar a limpo. Aí já não me compadeço, passo a
sofrer sozinho.
5 Lendo isso, lembro dos primeiros romancistas, os primeiros profissionais das letras que de fato vendiam seus
livros, que não viviam de mecenato. Diz-se que eram longos os primeiros romances, como os de Defoe e seus
conterrâneos, porque seus autores recebiam por quantidade e acabavam sendo rentáveis os detalhes a esmo,
as páginas prescindíveis. Conta-se que entregavam os manuscritos ainda talhados de incorreções, e que
cobravam mais caro caso os editores quisessem originais reescritos e revisados. Eu ouço essas histórias e sinto
que não pertenço à mesma linhagem, procuro outra tradição a que possa me vincular, uma corrente de
romancistas preocupados com as minúcias da linguagem. E, no entanto, sei bem que jamais escreverei uma
frase que perdure como a desses sujeitos, e aceito o meu limite.
Extraído de: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2024/05/18/sobre-a-forma-exata-das-palavras-onde-talvez-more-suabeleza.htm?cmpid=copiaecola (adaptado)
Em “Li com aflição uma crônica de Lima Barreto...” (4º parágrafo), a forma verbal destacada está no tempo e modo: