São afirmações que encontram respaldo na argumentação de Pos...
Texto I
“AS PRACA”
Sírio Possenti
O título "agressivo" é proposital. As intenções são duas: provocar os que dizem que só se pode compreender um texto - ou mesmo uma palavra - escrito "corretamente"; se algum desses sábios consegue ler "as placas" em "as praca" - os melhores sintomas são o riso de superioridade ou a correção que fará - sua tese será desmentida no ato. Também quero verificar se, de fato, alguém não consegue ler este título (eventualmente, tentará descobrir alguma ironia ou, ao menos, uma alusão ou sugestão, que o texto esclarecerá). Assim, eu poderia gritar "ignorante!", se alguém não consegue mesmo entender o sentido do título.
Deveria ser claro que "as praca" é outra maneira de dizer (ou de transcrever) "as placas". Uma maneira marcada socialmente, claro. As diferenças são duas variantes regulares (importante!), cujos percentuais de ocorrência podem ser medidos em uma pesquisa, se o cidadão tiver interesse e fundos e tempo e competência: uma é o apagamento do "s" no final do sintagma, como em as casa, as vaca, os cara, os penetra, as carne; insisto: o "s" só cai no final do sintagma; outra é o famoso rotacismo, r no lugar do l, na posição interna da sílaba (como em framengo, frecha e frauta) - também ocorre no final, como em carça, varsa etc.
Claro que o leitor pode achar que o texto queria se chamar as praças, e que faltaram um s e uma cedilha. Ainda assim, são duas diferenças. Quem descobre duas pode descobrir outras tantas. Mas quero mesmo falar de placas. Ultimamente, elas se tornaram objeto de coleção e de diversão. Pessoas fotografam placas Brasil afora, montam Power Points e os remetem a seus amigos, que os reenviam a seus outros amigos etc. Assim, fica-se sabendo que, em algum lugar do Brasil, alguém tem uma churrascaria e anuncia, com alguma pretensão à modernidade, barbie kill. Um pequeno comerciante de beira de estrada anuncia que vende inelgético, alguém avisa que adiante há um desvil etc. Vê-se de quase tudo em sítios como placas do meu Brasil e similares.
Trata-se de escrita popular. São escritas de pessoas pouco letradas. No caso, pequenos anúncios ou avisos. Em muitos casos, há erros, dos quais muitos riem. Um riso de deboche, em geral, um riso meio grosso, meio besta, o mais reles que a humanidade consegue produzir. Prazer que deriva de achar que "não sou como eles". Não estou pedindo que se pare de rir (não sei se alguém precisa de proteção). Estou sugerindo que o riso pode ser mais sofisticado. Basta entender de que tipo de erro se trata. Quem quer escrever "desvio" e escreve desvil está diante de uma palavra de cinco letras, das quais erra uma, só uma. Poderia ter escrito disvil, errando duas, ou desviu ou disviu, errando de maneiras diferentes. Crianças poderiam escrever tisviu ou tisfiu e variantes (ver, de novo, o famoso texto de Mattoso Câmara sobre erros de escolares, e a sofisticada explicação para a troca entre surdas e sonoras, que ele reclassifica).
Seria bom, se queremos conhecer o português pelos indícios que os erros de escrita oferecem, dar-nos conta de que a pronúncia de vil e de viu é exatamente a mesma para a maioria dos brasileiros, e que a mesma pronúncia se repete em vio, se esta for a sílaba final de uma palavra. O riso deixaria de ser uma gargalhada, talvez até se transformasse em sorriso de admiração. É que, se, obviamente, há um erro, já que a grafia obedece a decretos ou portarias, há uma sutil análise, revelando um talento de observador, embora equivocado no detalhe.
Para escrever barbecue, palavra estrangeira que deveria conferir algum charme extra à lanchonete ou churrascaria, o autor da placa busca conhecimentos da cultura americana que circulam por aí: quem não conhece a Barbie? A escrita da primeira parte da palavra (que, para ele, é uma) deve ser a mesma (ele é um bom observador!). Para o restante da sequência, cue, que soa como kil ou kiu, uma boa solução de escrita lhe pareceu ser kill, palavra que talvez conheça de algum filme americano. Errado, mas engenhoso!
Em inelgético, ocorre erro na grafia da primeira vogal, uma hipercorreção: muitos EEs são pronunciados como IIs, e, por isso, são grafados com i; o l da segunda silaba é uma óbvia hipercorreção, como em solvete. Sendo os RRs estigmatizados, tende-se a eliminá-los, substituindo-os pela letra que parece correta (como no caso Gleisi, comentado há duas semanas).
Essas "praca" são verdadeira mina para pesquisadores. Quem só vê nelas o fim do mundo (e da língua) é muito besta.
Ditado
O JN (27/06) informou que candidatos a emprego se ferram em provas de português. Mostrou um exemplo de prova: um ditado com 30 palavras - relativamente incomuns ou "bem" escolhidas, coisas como "obsessiva, exequível" etc., boas para errar. Não havia nenhuma do tipo "comida, nada, batata, cheiro, rancho" ou mesmo "almoxarifado, caixa, faturamento, faxina". Tarados!
Escolhendo bem, pode-se reprovar qualquer profissional da escrita em ditados de 30 palavras. A prova confunde grafia com escrita e escrita de palavras soltas com domínio de língua escrita. Sem querer defender os candidatos reprovados, preciso dizer que a prova é estúpida.
O mais interessante foi ouvir a declaração da responsável (chefe de pessoal?) de uma empresa: "Tem uma vaga que a gente tá com ela aberta há mais de quatro meses". Com base em qualquer critério análogo ao do ditado, ela seria demitida. Ou nunca teria sido contratada. O que, provavelmente, teria sido um erro da empresa.
(QUINTA, 30 DE JUNHO DE 2011. Disponível em: terramagazine.terra.com.br/ultimas/0,,EI8425-SUM,00.html. Acesso em: 15/11/11)