No trecho “Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário...
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Ano: 2023
Banca:
Instituto Consulplan
Órgão:
Prefeitura de Nova Friburgo - RJ
Provas:
Instituto Consulplan - 2023 - Prefeitura de Nova Friburgo - RJ - Agente de Combate às Endemias
|
Instituto Consulplan - 2023 - Prefeitura de Nova Friburgo - RJ - Auxiliar de Creche |
Instituto Consulplan - 2023 - Prefeitura de Nova Friburgo - RJ - Auxiliar de Saúde Bucal |
Instituto Consulplan - 2023 - Prefeitura de Nova Friburgo - RJ - Auxiliar de Secretaria |
Instituto Consulplan - 2023 - Prefeitura de Nova Friburgo - RJ - Técnico de Enfermagem |
Instituto Consulplan - 2023 - Prefeitura de Nova Friburgo - RJ - Técnico de Radiologia |
Instituto Consulplan - 2023 - Prefeitura de Nova Friburgo - RJ - Técnico de Imobilização Ortopédica |
Instituto Consulplan - 2023 - Prefeitura de Nova Friburgo - RJ - Topógrafo |
Instituto Consulplan - 2023 - Prefeitura de Nova Friburgo - RJ - Oficineiro |
Q2312730
Português
Texto associado
Restos de Carnaval
Não, não deste último Carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras
de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a
cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao Carnaval. Até que viesse o outro ano.
E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse
de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em
compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando
ávida os outros se divertirem.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita
de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu
de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas
de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para Carnaval de
criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha
então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia
ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca
de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um Carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu,
que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino
rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de
uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom
nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez
atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu
fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele Carnaval, pois, pela primeira vez na vida,
eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Mas por que exatamente aquele Carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo
eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta
ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge –
minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um
remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão
exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de Carnaval. A alegria dos
outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido
em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não
era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de
lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave
de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12
anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura,
brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos, já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar.
E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
(LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro. Rocco. 1999. Jornal do Brasil. Em: 16/03/1968.)
No trecho “Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de
que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara.” (4º§), as orações iniciadas pelas conjunções “mas” e “porque”
especificam, respectivamente, ideias de: