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O fantasma do Inferno Azul


1 Bira, Jair Careca, Rodneyre e Elpídio não se conheciam, mas tinham em comum uma rápida passagem pelos bancos escolares e o jeitinho brasileiro de driblar o desemprego: viver de bico. Foi em setembro de 1987 que uma oferta tentadora os uniu. Na ocasião, correu por toda Goiânia a necessidade de se contratarem “chapas” para quebrar paredes, asfalto, derrubar casas e remover objetos. Em troca, receberiam salário e mais diárias que, ao fim de uma semana, representavam o que conseguiam ganhar no mês. Jair José Pereira, pedreiro, recebeu a proposta na praça A, no bairro de Campinas, ponto de braçais. Aceitou e na mesma hora foi posto em uma Kombi branca, sem logotipo. Ubirajara Rosa de Souza fez o mesmo. Elpídio Evangelista da Silva e Rodneyre Ferreira souberam por amigos das contratações e apresentaram-se no escritório da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) em busca de uma vaga. Os quatro começaram a trabalhar na rua 57, no centro de Goiânia, foco inicial do maior acidente radiológico do mundo: o vazamento de pouco mais de 17 g de cloreto de césio-137, que se encontrava em um aparelho abandonado no Instituto Goiano de Radioterapia.

2 Os quatro não tinham noção do que era radiação e muito menos do que era césio. Tampouco foram informados dos cuidados necessários para a execução dos trabalhos, inclusive no depósito de lixo radioativo de Abadia, cidade a 20 quilômetros de Goiânia, para onde foram transferidos após a limpeza das áreas “quentes” (de alto grau de radiação). A contratação de “chapas” e a convocação de militares e civis do Consórcio Rodoviário Intermunicipal (Crisa), da Companhia de Limpeza Urbana e até da empreiteira Andrade Gutierrez marcavam o início de uma guerra surda para salvar Goiânia do brilho azul fluorescente, que encantou a família de Leide das Neves Ferreira. […]

3 Quinze anos depois, Bira, Jair, Rodneyre e Elpídio continuam “chapas” em todos os sentidos. Mas não é só a camaradagem que os une. Eles já apresentam sintomas da radiação que tomaram durante o tempo que trabalharam diretamente no acidente. Até 1993, apenas os quatro eram os encarregados pelo depósito provisório e trabalhavam das 8 às 18h. Em depoimento, contaram que viajaram junto com tambores de lixo radioativo, além de colocá-los e retirá-los de caminhões e kombis, principalmente quando as empilhadeiras quebravam. De serventes, conforme os contratos, foram alçados a técnicos da CNEN. A imprensa registrou inúmeras vezes os braçais vestidos de macacões e contadores Geiger à mão passeando entre as 13,4 toneladas de lixo radioativo. Segundo eles, uma farsa. “Ninguém sabia que não éramos técnicos. Durante muito tempo, não havia restrição para nós. Permanecíamos em áreas controladas sem saber ao certo o tempo permitido. As canetas dosimétricas estouravam com frequência”, ou seja: atingiam a carga máxima de radiação, revelou Elpídio, que chegou a chefiar os companheiros em Abadia. Munido de fotos suas e de Bira no depósito, publicadas na revista Manchete, ele acusou os técnicos da CNEN de não terem informado quais os locais de maior radiação ou como utilizar os aparelhos medidores.

4 O fato mais grave revelado por Elpídio e confirmado pelos outros três está relacionado à deterioração dos tambores de lixo. “Tirávamos os rejeitos do tambor furado ou enferrujado e passávamos para outro, manualmente. O danificado era amassado a marretadas e colocado em uma caixa metálica”, afirma Elpídio em seu depoimento. Rodneyre faz coro e acusa o físico Walter Mendes Ferreira de negligência. Segundo os “chapas”, ele só comparecia ao depósito provisório para receber equipes de reportagem ou técnicos internacionais. Fora isso, tratava os problemas que lá ocorriam pelo rádio. A ordem, em dia de visita, era virar os tambores enferrujados, remendá-los e pintá-los com spray amarelo ou cobri-los com lona para que as câmeras não pudessem filmá-los ou fotografá-los, contaram eles ao MP. […]

5 Elpídio está no grupo III de tratamento, Rodneyre e Jair não se enquadram em lugar algum. Bira disse que chegou a ficar um mês afastado por ter sofrido forte dose de radiação. Rodneyre e Jair moram em casas humildes na periferia da capital e continuam vivendo de bicos. Elpídio pediu demissão do hotel em que trabalhava como copeiro para cuidar da saúde. Eles evitam contar que atuaram no acidente. “Se a gente fala, tá lascado. Aí é que não arruma nada mesmo. O pessoal acha que, se a gente adoece, pode passar pra eles”, diz Jair, que leva a vida “sem pensar muito nessas coisas”. Jair só lembra do césio quando se dá conta de que não consegue mais exercer seu ofício de pedreiro. “Não posso me abaixar para assentar um piso. Sinto muitas dores no corpo. Dente, perdi um monte. Não sou mais o mesmo. Naquele dia, eu ainda brinquei dizendo que não voltava para casa sem o feijão. Se eles tivessem contado o que era, eu não ia.”

[...]


Disponível em:

< https://istoe.com.br/23768_O+FANTASMA+DO+INFERNO+AZUL/ >. Acesso em:

8 out.2017.

A reportagem da Isto é, além de informar sobre as consequências do acidente radiológico em Goiânia, estrutura-se sobre a

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